Fahrenheit 451

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Num futuro onde o totalitarismo assustador comanda, os livros são censurados. Objetos de subversão, capazes de tornar as pessoas infelizes e anti social. Tanto que na abertura do filme, os créditos são na verdade falados, e não escritos como de costume. A piada é válida, e já nos insere na trama: a leitura aqui não tem vez! Cores delirantes e antenas de TV. O mundo está dominado pela caixa mágica, que além de objeto de propaganda do governo, hipnotiza quem assiste, tornando um soldado a seu favor.

As pessoas são enclausuradas, como na Idade Média. O castigo divino caso leia um livro é estar fadado à infelicidade eternamente, e as pessoas passam a ter medo. E a forma que foi encontrada de tirar isso das pessoas, foi à companhia de bombeiros 451. Mas não quaisquer bombeiros. Esses ao invés de apagar o fogo, o causam, queimando os livros encontrados nas casas dos que ainda insistem em ler. O Fahrenheit 451 refere-se justamente a temperatura que o papel pega fogo. E aos que são encontrados com esse material são levados para interrogatório e não mais voltam.

Entre os 451, temos Montag (Oskar Werner), um exemplar bombeiro, que mesmo a cara de sonso não deixa enganar: ele ta ali a serviço e põe pra ferrar com os “fora da lei”.
E prestes a ganhar uma promoção, o que ele mais quer é continuar sua vida, dentro dos conformes e seguindo fielmente seus superiores e a ideologia que o leva. Em um diálogo com seu capitão, a constatação disso:

“ — O que faz nas horas de folga, Montag?
— Muita coisa… corto a grama…
— E se fosse proibido?
— Ficaria olhando crescer, senhor.
— Você tem futuro.”
.

Ele vive a vida mais sem sentido do mundo, mas gosta disso. Tem uma casa, mas não possui visão de melhora – a não ser quando sonha com sua promoção. Tem uma esposa, Linda (Julie Christie), que vive na sala da casa assistindo TV e tomando pílulas. A TV muito bem lembra os dias de hoje: programas ruins que atraem as grandes massas e incentiva a população a ser idiota e não a obriga a pensar. As cenas dela são quase uma visão dos dias de hoje. Mostra como a TV torna quem assiste dependente daquilo, equiparando até às pílulas que ela toma, como algo viciante e sem futuro.

Mas como a TV prega e o governo assina embaixo, quem vive assim é feliz. E bom, não há nenhuma felicidade. E olha que eles nem lêem. Não há diálogo, não há qualquer resquício de sentimento e a forma apática e as vezes anêmica com a qual tentam estabelecer diálogo, só mostra a futilidade assustadora a que somos submetidos cada vez mais. Involuntariamente ou não, é assim que tem sido e é assim que vai ser se continuar como está.

E na rotina de queimar romances e obras que não dizem nada, como eles mesmos dizem, a vida segue e todos estão felizes. Se estiverem dentro do sistema e aceitando o sistema como é, pronto, ta valendo. Mas levam uma vida sem contato, sem sentimento. As pessoas entendem o que fazem, e mecanicamente o fazem, como na cena em que há uma limpeza no sangue de Linda. É tudo robótico, mas na verdade, não há essência, não há vida, não há sentimento, não há nada.

Mas eis que um dia, uma mulher muda tudo. Clarisse (Julie Christie), uma professora, feliz , longe de estar enclausurada na falta de leitura, cruza a vida de Montag. E entre questionamentos e palavras que instigam Montag a olhar as coisas por outro prisma, logo nosso dedicado incinerador de livros se vê na necessidade de ler. E quando começa, percebe que há luz no meio da escuridão que vive. Então, o passatempo considerado crime, torna-se um hábito para ele, mas as conseqüências disso podem ser devastadoras e esclarecedoras em sua vida.

E em um dia de trabalho, quando vão à casa de uma mulher que guarda uma biblioteca clandestina, percebe que pode ajudar a mudar o mundo, e bem como foi com ele, salvar outras vidas da estagnação mental. Mas precisa também vencer os inimigos que vão surgindo à sua volta. E no meio disso, descobre os Homens Livro, pessoas que para não ver suas obras preferidas serem queimadas, decoram o texto e passam a ser esse livro. É como o Iluminismo, a época que as luzes do conhecimento venceram a escuridão da falta dela, causadas por séculos de opressão e dominação mental.

Primeiro filme colorido do francês François Truffaut. E bastante colorido por sinal, com direito ao excessivo uso de cores fortes, o que dá um impressionante efeito. Mas o que marca mesmo a ótima direção do cara nesse filme é a forma como conduz os momentos onde livros são queimados e diálogos críticos são ditos. O filme é uma grande piada. Sim, uma grande piada. O que o diretor quer é, de forma descontraída, prestar uma homenagem ao poder da leitura.

Em cenas onde as pessoas se mostram grandes ignorantes, logo um livro está ali, e quando esse livro é queimado, essa pessoa aparece ainda mais retardada. Há gags interessantes como o livro de Ray Bradbury que inspirou o filme ardendo em chamas , ou a ênfase que o capitão dá ao dizer que todos os livros devem ser incinerados – ele estava com Minha Luta, escrito por Hitler. E tudo conduzido com uma maestria linda. Truffaut brinca com nossos olhos, brinca com o próprio filme e tira disso uma homenagem linda à literatura universal.

E mesmo que fugindo um pouco de seu texto base, consegue tirar do filme o mesmo que o livro faz. Há críticas sobre indivíduo e sociedade – bem exemplificado na passagem que citei logo no começo do texto – , a falta de qualidade do que nos diverte e como isso é facilmente maleável e manipulável, conhecimento e ignorância – que rende uma das cenas mais lindas do filme: uma mulher morrendo queimada com seus próprios livros – , apatia, desintegração da sociedade entre vários outros temas que o filme desenvolve em cenas ou em diálogos, com uma eficiência maravilhosa.

E contando com atuações firmes, o filme desenvolve com uma naturalidade e espontaneidade incrível. O defeito maior deve ser o fato de em um dado momento de o filme cair numa monotonia chata ou prolongar demais algumas cenas. O diretor ainda tenta compensar isso com belas cenas, como por exemplo, o belíssimo plano que fecha o filme. Mas tirando esse detalhe, é um grande filme.

E que filme.

Ao término é muito difícil não sair pensando nas idéias tão bem trabalhadas e tão bem construídas ao longo da trama. E é isso que vale num filme cuja proposta é tratar do tema sem precisar ser polemico ou apelativo.

E mesmo não atingindo o resultado mais apurado que obras como Júlia e Jim ou A Noite Americana, Truffaut imprime aqui as qualidades que o eternizaram como grande cineasta. Criativo e mostrando conteúdo.

Nota: 8,5
Cotação: **** *.

Fahrenheit 451, Inglaterra (1966)

Direção: François Truffaut.
Atores: Oskar Werner , Julie Christie , Cyril Cusack , Anton Diffring , Anna Palk.
Duração: 112 minutos.

Um comentário em “Fahrenheit 451

  1. Ra30,

    Ótimo texto, parabéns!

    Fahrenheit 451, para mim é um dos melhores de François Truffaut, e Julie Christie aqui maravilhosa em dose dupla.

    Todos os livros podem ser queimados, mas não tem como se apagar da memória o que não se quer, e uma forma de passar todo aprendizado e conhecimento adiante para outras gerações a fórmula encontrada é a metáfora da decoreba.

    Um dos roteiros mais inteligentes da fábrica dos sonhos.

    A obra literária de Ray Bradbury em boas mãos, o resultado não poderia ser melhor.

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