Gainsbourg – O Homem que Amava as Mulheres (Gainsbourg – Vie héroïque. 2010)

Por notobviouscinema
Gainsbourg (vie heroïque)
é um dos filmes mais originais e interessantes dos últimos tempos. Deve entrar logo em cartaz com o enganador subtítulo nacional O homem que amava as mulheres. O epíteto, roubado de um filme de Truffaut dos anos 70, não tem nada a ver com o rebelde compositor francês que sacudiu o mundo nos anos 60 e 70: Serge Gainsbourg estava mais para o homem que traçava as mulheres. Joann Sfar escreveu a história de Serge Gainsbourg em quadrinhos, e decidiu passar para a telona sua visão original sobre o intrigante personagem que se tornou famoso, entre outras coisas, por ter tido Brigitte Bardot como amante. A principal qualidade do filme é não se prender aos limites da “verdade” histórica – nos créditos finais, o diretor deixa claro que não se baseou apenas nos fatos, mas também nas mentiras contadas por Gainsbourg.

Livre para transitar entre realidade e fantasia, entre história e delírio – a tal vida heroica do título francês – Sfar conseguiu montar uma narrativa extremamente original que, com raros momentos de perda de ritmo, carrega o espectador por mais de duas horas de filme no imaginário surreal do garoto judeu na Paris ocupada que se tornou o autor de uma das músicas mais memoráveis já compostas (não estou exagerando). Mesmo mergulhado na fantasia, Sfar soube respeitar as referências históricas. A escolha do ator Eric Elmosnino foi perfeita, Laetitia Casta convence como a sedutora Bardot apesar de não ser nem tão parecida. Mas o que mais impressiona é a inglesa Lucy Gordon, uma atriz bissexta que faz o papel de Jane Birkin – quando li que este filme seria rodado, meu medo é que o diretor não conseguisse explicar o calibre erótico da magricela de voz aguda; para meu alívio, Lucy incorpora Jane de uma forma que dispensa explicações. O filme, inclusive, é dedicado a Lucy Gordon, que morreu logo após as filmagens. Na descrição do meu blog escrevi que trataria das pequenas coisas que tornam um filme memorável. Aí vão algumas:

    • O ator que faz o lado negro de Gainsbourg (le Guèle, ou Gainsbarre) é Doug Jones, o mesmo que fez o fauno em O Labirinto do Fauno.
      • Em uma cena rápida no início da vida adulta Gainsbourg está tendo uma aula de violão. O mestre é Django Reinhardt, uma lenda da música, que já foi reverenciado por Woody Allen em seu Sweet and Lowdown (Poucas e boas). No filme de Allen, o megalomaníaco Emmet Ray (interpretado por Sean Penn) tem uma frustração, a de ser reconhecido como o segundo melhor do mundo. Pois bem, o melhor é o próprio Django. Uma das poucas gravações ao vivo de Django é esta, onde ele aparece a partir dos 0:40, tocando com dois dedos da mão esquerda. Dica: observe, ao longo do filme, quantas vezes Serge usa apenas dois dedos – por exemplo ao segurar um copo.
      • O filme mostra uma cena em que Serge brinca com as filhas que teve com Jane Birkin. Uma delas, Charlotte, é hoje uma atriz famosa que herdou muito da mãe – ela fez a personagem principal do Anticristo de Lars von Trier.
      • As letras das músicas são atrações à parte, nem todas passíveis de tradução. Entre outras, a curiosíssima justificativa de Boris Vian para encher a cara de vinho [*]

Je bois       systématiquement Pour oublier       tous mes émmerdements

Para completar: a música mais conhecida de Gainsbourg é evidentemente Je t’aime, moi non plus. Lançada no disco 69, o ano erótico, e cantada (cantada???) por Jane Birkin e Serge Gainsbourg em sua versão mais conhecida, a música transuda erotismo por todos os poros do speaker. A origem desta música aparece discretamente em uma das cenas mais quentes do filme e comprova a força do poder de veto de um marido corneado. Quando esta música foi lançada por aqui eu engatinhava em meus estudos de francês e não tive coragem de perguntar à professora por que o nome tão esquisito. É que quando Jane fala Je t’aime (eu te amo), Serge responde Moi non plus (nem eu). [**] Levei alguns anos para entender a fina ironia da letra, e mais outros tantos para descobrir que o jogo de palavras tinha um pedigree. [***] [*] na versão do filme Gainsbourg faz um dueto com uma letra diferente que toma emprestados os elefantes cor-de-rosa que o elefantinho Dumbo enxerga quando se embriaga no filme da Disney. [**] que eu me lembre, nunca me ocorreu fazer uma citação de Gainsbourg quando ouço alguém me dizer a frase mágica da música – provavelmente não estaria aqui para contar se tivesse acontecido. :) [***] reza a lenda que foi o modestíssimo Salvador Dalí quem, ao ser comparado a Picasso, teria respondido: Picasso é espanhol, eu também. Picasso é um gênio, eu também. Picasso é comunista, moi non plus.