Cinema – Um Olhar na Psique Coletiva

A comoção por combates corpo a corpo é semelhante à que havia por duelos romanos há 2000 anos.

Cinema ou instituição para tratar a psique coletiva. Por: Charles Alberto Resende.

teatro-e-publicoJung (1989, §48) chamou o teatro de “instituição para o tratamento público de complexos”. Ele explicou que o prazer que se sente com a comédia, com uma história dramática com final feliz ou com uma tragédia se deve à identificação de complexos pessoais com os da peça. Com relação à tragédia, tem-se a sensação terrível e benéfica de se presenciar a ocorrência com o outro daquilo que nos ameaça. Essa identificação também ocorre com outras produções como o cinema e a novela. Essa identificação pode chegar a tal ponto que fortes complexos podem ser trabalhados em psicoterapia, por meio de filmes especialmente indicados para tal. E já se criou até um nome para uma espécie de terapia que usa enfaticamente as produções cinematográficas: a “cinematerapia”.

Um filme pode aludir a possíveis soluções de problemas psíquicos e pode também questionar preconceitos, pontos de vista e convicções fortemente arraigadas. Os filmes podem falar poeticamente à alma e ao inconsciente, sem que o cliente tenha noção inteiramente consciente do que está sendo tratado, abreviando a terapia, sobretudo devido à amplificação de temas já tratados ou ainda por se discutir nas sessões. Uma novela ou filme que toca um complexo pode ter um efeito particularmente intenso no espectador, de forma a produzir emoções nomeadas popularmente de “positivas” ou “negativas”, cujas ocorrências associadas podem ser analisadas em terapia.

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“Star Wars” foi escrito com base em conceitos como o “inconsciente coletivo”.

Ora, os filmes que afetam positiva ou negativamente uma pessoa, de forma mais ou menos intensa, como já exposto, o fazem porque representam aspectos que possuem fortes conexões com seus complexos, ensejando sua identificação com personagens e situações. Se um certo filme impressiona muitas pessoas, isso se deve ao fato de ele refletir os complexos dessas pessoas, desde pequenos grupos, até nações inteiras. Assim, complexos coletivos, pertencentes a vários países, podem ser ativados por determinados filmes, mobilizando as massas, como ocorreu com produções como “Guerra nas estrelas”, “O senhor dos anéis”, “Avatar”, “Titanic”, etc. A análise dos filmes de maior bilheteria, que devem seu sucesso principalmente ao seu roteiro e à elaboração dos personagens, pode fornecer um diagnóstico mais ou menos preciso dos complexos mais mobilizados no inconsciente coletivo à época de seu lançamento. A energia psíquica está atrelada a esses complexos, e esse diagnóstico pode explicitar facilmente o caminho que ela está tomando e, pelo menos teoricamente, pode tornar claro para qual meta está se desenvolvendo, assim como os obstáculos desse destino.

O homem possui hoje em dia meios para prever coletivamente seu comportamento, assim como recursos para tratamento em massa das pessoas. Esses expedientes podem ser usados com maestria para um verdadeiro salto evolutivo de consciência, o que vem sucedendo sofregamente, ao contrário do que ocorre com o desenvolvimento tecnológico. Infelizmente, percebe-se, por meio de diversas leituras, que a humanidade se encontra em um estágio evolutivo de consciência, no sentido de uma integração maior à totalidade psíquica, semelhante à que havia há mais ou menos 2000 anos. Apenas um “verniz tecnológico” parece encobrir o estágio precário do inconsciente coletivo, fornecendo a aparência altamente civilizada que parece iludir a todos.

Infelizmente o homem parece estar se desfazendo cada vez mais da linguagem simbólica, que poderia aproximá-lo o suficiente dos instintos vitais para que retornasse aos rumos de um verdadeiro crescimento psicológico saudável. A maioria dos filmes parece indicar esses caminhos: basta atentar a eles.

Referências
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes, 1989. v. V.

A Lição de “Guerra Mundial Z” (2013): Não Ter Repulsa ao Sofrimento.

Autor: Charles Alberto Resende.

Um vírus, semelhante ao da raiva, se espalha pelo mundo inteiro. As pessoas infectadas morrem e se transformam em zumbis, sensíveis a qualquer ruído, e loucas para morder e infectar outras pessoas.

Guerra Mundial Z” impressiona em seus efeitos especiais. Vemos milhares de zumbis se amontoando para vencer obstáculos, como se fossem água jorrando. Talvez por esse motivo, o filme deixa uma impressão de como é frágil a condição humana. Talvez a humanidade nunca seja ameaçada por uma “praga zumbi”, mas a forma como o homem interfere no equilíbrio da natureza pode produzir ameaças talvez tão mortais quanto ela. Recomendo que assistam primeiro ao filme, para que não se deparem com a explanação do final deste, o que poderia ser frustrante para alguns.

Von Franz (1992), em seu livro “Reflexos da alma”, que inclusive dá uma base histórica para a projeção – fenômeno em que as pessoas transferem para outras conteúdos de seu próprio inconsciente, tratando-as de acordo com estes – explana sobre a temática dos demônios e monstros que povoam mitos e outros contos da humanidade. Certos complexos autônomos do inconsciente podem conseguir força suficiente para aplacar o ego e possuir as pessoas. O “possuído” fica incapaz de ajudar a si próprio, pois os complexos desintegram a personalidade dirigindo-a a ações e pensamentos em torno de um único tema.

Essa unilateralidade particular do complexo autônomo aparece claramente representada no folclore e nos mitos de muitos povos, visto que os demônios têm quase sempre uma forma defeituosa ou parcialmente humana: os olhos ou o rosto no lugar errado (na barriga, nos órgãos genitais) ou em quantidade “errada” (Polifemo, que só tinha um olho, ou os seres maus de um olho ou três olhos nos contos dos irmãos Grimm). (VON FRANZ, 1992, p. 115). Então, ela conta um conto a título de ilustração:

Certo dia, dois irmãos caçando na floresta dão de cara com um grupo de pessoas festejando e bebendo. O irmão mais velho se sentiu atraído a participar, enquanto o mais novo se pôs de lado com medo, pois temia, e com razão, que se tratasse de um grupo de fantasmas, de espíritos de rãs metamorfoseadas em homens. Os irmãos pernoitaram numa cabana e dormiram na rede: o irmão mais velho, já bêbado, ficou com as pernas penduradas próximas ao fogo, e quando o mais jovem o avisou, ele gritou: ‘Akka, akka!’ [como faz uma rã, nota do editor do site], encolhendo imediatamente as pernas. Depois soltou-as de novo sobre o fogo e só então notou que os seus dois pés estavam carbonizados. Aí pegou uma faca, decepou os pés, arrancou as carnes e afinou o osso da perna, deixando-o como uma lança. Deitado na rede, ele espetava então os passarinhos que passavam. Ele não tirava os olhos do irmão e este, então, escapou às escondidas; o irmão doente corre atrás dele apoiando-se nas pontas dos ossos, e no caminho espetou com suas pernas feito lanças, uma corça pensando que era o irmão. O mais jovem voltou correndo para a tribo e avisou os outros. Eles atraíram o doente para fora da rede, cercaram-no e o mataram“. (VON FRANZ, 1992, p. 115-116).

Ora, a analogia com o filme é flagrante. No conto, o irmão mais velho adota como mania o ficar espetando os animais e as pessoas com as pernas decepadas, seu defeito adquirido. Ele perdera os pés, isto é, sua capacidade de estar em contato com a realidade. No filme, as pessoas morrem, mas continuam a “viver”, embora não como humanas, nem como animais, mas de forma estranhamente sobrenatural. Também não são mais deste mundo. Tudo o que sabem é morder as outras pessoas para contaminá-las. A analogia com certas manias recentes também é flagrante: o “curtir” do Facebook, as modas ultrarrápidas do consumo, as trocas por tecnologias mais atuais, enfim, o consumo pelo consumo. Simbolicamente, é pela boca que explícita e figuradamente mais “consumimos”, sejam alimentos, sejam outras pessoas, através da difamação, reduzindo os outros.

Porém, estranhamente, os zumbis não contaminam pessoas que já estão predispostas à morte, pessoas que estão contaminadas por qualquer doença que as predisponha à morte prematura. Em “História da arrogância”, Zoja (2000) explica como o homem contemporâneo é ansioso por conforto, e o quanto ele procura negar a morte, a doença, a feiura, usando, para isso, principalmente de métodos farmacêuticos. O homem procura afastar de si tudo o que lembra o aspecto do sofrimento relativa à existência humana. Ultimamente, sobressaem-se notícias de que certos cientistas estejam trabalhando à procura de uma panaceia, que contribuiria para a consecução da “vida eterna”. Entretanto, apesar disso, surgem novas doenças, novas guerras, novos tipos de comportamentos inconscientes destrutivos, entre eles, a drogadição. É como se a morte se impusesse de uma forma ou de outra, apesar de qualquer esforço em contrário. De volta à trama dos zumbis, a cura final se dá com a infecção das pessoas com uma espécie de soro que as contamina com algum tipo de doença, o que as faz aparentemente imperceptíveis aos “mortos-vivos”. Ironia: quando o ser humano abraça a morte e a doença, então os zumbis param de ataca-lo.

Não quero aqui fazer apologia à morte ou à doença, mas a mensagem do filme é clara ao afirmar que o remédio para o consumismo atual, seja na forma de dependência química, do consumismo desenfreado ou da insatisfação sem sentido, não é a repulsa ao sofrimento. Este deve ser aceito como condição natural do ser humano, e talvez mais necessário à vida e ao desenvolvimento do lado sentimental. Sem este, o homem não aprende a conviver com o outro, nem a viver consigo mesmo. Tal como já vivenciei várias vezes na prática psicoterápica, a fuga geralmente não é saudável, exceto enquanto o ego ainda não se encontra em condições de encarar de forma mais realista sua condição interna.

E isso talvez seja ainda mais uma pista para a situação do homem contemporâneo: seu desenvolvimento psíquico não está indo de encontro ao fortalecimento do ego, à sua maturidade, daí sua suscetibilidade, sua carência de sentido. Ele não é forte o suficiente para encarar a realidade da vida, sua dureza, sua crueza. Por outro lado, ele também está tendendo a abandonar, cada vez mais, o aspecto espiritual da vida, com a ajuda do qual podia lidar com as agruras do dia a dia. O médico está se transformando no sacerdote da alma, entendida aqui como uma espécie de fisiologia do corpo. E o filme denuncia isso através da vacina. Os personagens não atentam para a condição sobrenatural que os mortos-vivos personificam. Ela aponta para o lado espiritual. Os zumbis podem não mais atacar, mas continuam presentes no final. Procuram apenas incinerá-los, pois não há mais o que fazer, já que as pessoas foram reduzidas a mortos horríveis e animados. Qual será o próximo passo? Espero que não deixem de responder também a isso.

REFERÊNCIAS
Von Franz, Marie-Louise. Reflexos da alma. 1. ed. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1992.
ZOJA, Luigi. História da arrogância. São Paulo: Axis Mundi, 2000.