Uma Boa Mentira (2014). O que preservar e sacrificar numa nova vida?

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Diretor Philippe Falardeau

Diretor Philippe Falardeau

Por: Valéria Miguez (LELLA).
Numa atualidade onde alguns por egoísmo querem uma regressão social… Eis aqui um filme que irá tocar a outra parte que busca por mais e mais direitos humanitários até para uma outra parte bem maior do planeta… Ele fala de uma guerra civil que quando muito foi parar em algum parágrafo de um Livro de História Geral. Lembrando ainda que mesmo as do tempo presente quando veem a público são logo esquecidas… Então, é de se aplaudir quando fatos como esses são mostrados em Filmes! “Hotel Ruanda (2004), é um exemplo. Logo, o filme “Um Boa Mentira” também não deixa de ser uma releitura de páginas da História da Humanidade: do que ela tem de perverso e do que ela tem de bom! Mas tem muito mais! Ele conta a história de um grupo de sobreviventes do Sudão que foram viver nos Estados Unidos. Mas que nem por isso o filme passa rapidamente por tudo o que eles passaram ainda em solo pátrio. São órfãos de uma Guerra Civil deflagrada por religião e poder, em 1983, dizimando muitos sudaneses… Vale lembrar que genocídios até por limpezas étnicas não são exclusividades do solo africano…

Se quer ir rápido, vá sozinho. Se quer ir longe, vá acompanhado.” (Provérbio Africano)

uma-boa-mentira_2014_02Um Boa Mentira” fora o sonho americano para alguns refugiados sudaneses que nem sabiam o que significava isso. Era apenas a esperança de uma vida melhor após tantas lutas por sobrevivências. E o filme nos mostra todas elas! A longa caminhada que fizeram sem uma direção certa… Onde por vezes indicadas por aqueles que não mais poderiam seguir em frente… Ou quando tiveram que aceitar o sacrifício de um deles para que então os demais pudessem seguir adiante… Ou mesmo já estando num de Campo de Refugiados, já em 1987… Com racionamento de comida… Doenças… Eles ainda tiveram que esperar 13 anos até terem seus nomes numa das listas de admissão aos Estados Unidos…

Huckeberry Finn mentia para sobreviver em situações indesejáveis. Mas mais a frente as mentiras mudaram porque ele mudou… Quando diz ao caçador que não tinha escravos, era mentira, mas para salvar Jim. A liberdade de Jim significava mais que o dinheiro de entregá-lo…

uma-boa-mentira_2014_04Ainda em solo pátrio, e antes de terem quase a totalidade dos familiares dizimados, levavam uma vida bem rural, entre rebanhos bovinos e tendo como “vilões” felinos famintos… O de modernidade que por lá apareceu foram as armas, os helicópteros… É! As armas chegando primeiro… Com isso tudo que iriam conhecer dali para frente seriam de fato novidades… Já começando pelo o voo em avião, a comida à bordo… Mas o que mais chamava atenção estava invisível: do irem ao encontro de uma vida melhor… E em “Uma Boa Mentira” teremos a vida de quatro deles, mas representando a de todos que ficaram conhecidos como os Garotos Perdidos do Sudão. São eles: o gigante e religioso Jeremias (Ger Duany), o habilidoso Paul (Emmanuel Jal), o bom com a oratória Mamère (Arnold Oceng) e a meiga Abital (Kuoth Wiel). É Mamère quem nos conta essa história! E lá foram eles felizes como crianças! Mas já no desembarque surge a primeira pedra nesse novo caminho… Mas o jeito eram prosseguirem…

Olhe para mim. Eu era do exército. Estive na guerra. Mas muitos de nós éramos só garotos… Confrontando coisas inimagináveis. Tendo que fazer escolhas que ninguém deveria fazer. Seu irmão fez a escolha dele naquela dia. Uma decisão só dele. A decisão não era sua. Você não tinha o poder. Nunca teve.

uma-boa-mentira_2014_05Separados da Abital, os três então conhecem aquela que os ajudariam a arrumar um emprego, Carrie Davis (personagem de Reese Witherspoon). Fora buscá-lo em lugar da representante da instituição que os trouxeram da África, Pamela Lowi (Sarah Baker). Já a partir desse primeiro contato, Carrie começa a perceber que tudo era realmente novidade para eles. Mas nessa convivência não fora apenas o choque cultural que a deixara meio perplexa, mas sim em quanto mais eles iam descobrindo as novidades dali iam também preservando algo própria. Onde numa cena, por exemplo, faz um bem à alma: “Estamos olhando as estrelas.”… Assim eles prosseguiram meio que separando dos itens considerados essenciais para muitos dali o que realmente era essencial para eles… Pausa para falar da performance de Reese Witherspoon! Ela esteve ótima até em não solar. Muito embora creio que nem conseguiria por que os três – Ger Duany, Emmanuel Jall e Arnold Oceng – brilharam! E aplausos também para o Diretor Philippe Falardeau (de “O Que Traz Boas Novas“) até pelo timing perfeito contando muito bem toda essa história!

Mesmo que nossas diferenças possam nos dividir, nossa humanidade nos une. Somos irmãos e irmãs tentando compartilhar esse mundo maravilhoso que chamamos de lar.”

uma-boa-mentira_2014_06Num mundo onde valorizam tanto os bens materiais em lugar do que seria realmente essencial para si próprio e os demais a sua volta… Num mundo onde o desperdício até de alimentos ainda é muito grande… Assistir ao filme “Uma Boa Mentira” – que mesmo contendo cenas que doam na alma -, ele também nos lava a alma! Por ainda ter pessoas verdadeiramente humanas e desejosas de um mundo cada vez mais menos desigual. Mas principalmente que histórias como essas, dos Garotos Perdidos do Sudão, nos levam a reafirmar nossos conceitos de que os valores morais e éticos são o que realmente levamos de bagagem na jornada da vida. Mesmo tendo que atravessar infernos… Mesmo que pelo caminho tenhamos que contar “uma boa mentira“… Assistam essa emocionante história! Nota 10!

Uma Boa Mentira (The Good Lie. 2014)
Ficha Técnica: na página no IMDb.

Who is Dayani Cristal? (2013)

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“Para mim é muito frustrante saber que alguém que tinha sonhos, acabou se transformando em um número, estatística.”

Acompanho a trajetória desse documentário desde muito antes de poder assisti-lo. Assim que me lembro de ter lido uma crítica muito ruim quando da exibição do filme no Festival de Cinema Sundance, no qual, aliás, ele foi premiado como melhor documentário. Acreditando nessa tal crítica, pensava comigo mesma: “Ainda que seja ruim, merece o reconhecimento por tratar de um assunto tão delicado quanto cotidiano e essencial de ser pautado”. Estritamente, a imigração clandestina para os Estados Unidos através da fronteira com o México. De maneira mais abrangente, o questionamento de inúmeras condições pré-estabelecidas e naturalizadas, mas que, na realidade, são como tudo, uma construção ao longo do processo histórico: as fronteiras, o capitalismo, a exploração do homem pelo homem, a hierarquização das pessoas e de suas vidas, a valoração da mercadoria, entre muitas outras.

Pensava eu que esse filme seria como tantos outros que se propõem a discutir questões sociais e políticas importantíssimas, mas que falham por vários motivos, como o excesso caricatural na construção de situações e personagens, por exemplo. Insiro nessa linha o filme Cronicamente inviável (Sérgio Bianchi, 2000) e Déficit (Gael García Bernal, 2007). Ambos têm a proposta de retratar as relações entre a classe média e as classes populares, mas acabam se tornando caricatos e chatos. Em outra chave, temos o filme O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), cuja representação da sociedade pernambucana nos trouxe aos olhos as sutilezas da exploração cotidiana e das relações entre classes, tão mais perversas quanto mais invisíveis.

Pois bem, ainda que todos esses três filmes aqui citados sejam ficções e Who is Dayani Cristal? seja um docudrama, acho plausível dizer que ele segue nessa segunda linha de filmes que vão tratar de questões essenciais ao entendimento da sociedade sem fazê-lo de forma caricatural, simplificadora e/ou redutora. Com um posicionamento político bastante claro desde seu início, o documentário cumpre bem seu papel de denúncia e militância sem se tornar chato, maçante ou apelativo.

O filme se desenvolve em duas vertentes: a primeira, claramente documental, que retrata as dificuldades de identificação de corpos de imigrantes clandestinos encontrados no deserto do Arizona, tendo como mote um corpo com a tatuagem “Dayani Cristal” no peito. A segunda vertente, misto de drama e documentário, é aquela que mostra a reconstrução feita por Gael García Bernal da trajetória deste hondurenho encontrado morto. Não há aquelas cenas às quais costumeiramente adjetivamos como chocantes: sangue, violência, agressão. Mas há sangue, violência e agressão, expressas de maneira sutil, assim como é sutil tudo que faz com que as situações retratadas no documentário possam ocorrer todos os dias em diversos lugares sem que seu questionamento consiga bater de frente com a política que garante sua reprodução.

E esse pra mim é o grande acerto do documentário; colocar a forma fílmica e a forma social em compasso. A violência social denunciada pelo documentário é praticada na realidade cotidiana com tanta sutileza como nos é apresentada no filme. A agressão diária que faz com que homens e mulheres sejam obrigados a abandonar seus países deixando para traz sua história, sua identidade e as pessoas a quem querem bem para se arriscarem numa jornada permeada por perigo, carência e invisibilidade é tida por quase todos como natural ou, quando muito, irreversível. Daí que se reproduza há tanto tempo, cada vez de maneira mais qualificada, otimizada, deixando para trás centenas de milhares de pessoas, consideradas menos importantes e, portanto, de morte aceitável; uma estatística.

Outro ponto bastante positivo do documentário é logo no começo já deixar claro que estamos diante de uma construção metonímica, que parte de um pedaço para exemplificar o todo: a trilha dos créditos iniciais é a canção Latinoamerica, da dupla porto-riquenha Calle 13, da qual gosto muito e que, na minha opinião, é uma das produções artísticas que mais bem captaram o que é ser latino-americano e onde nos inserimos socialmente, como devemos nos portar: de pé e em luta. Como o próprio nome da canção diz, quem canta é todo latino-americano e, portanto, a história não é apenas do homem com a tatuagem “Dayani Cristal”, mas sim de muitos e tantos outros irmãos de continente e de trajetória.

Fica a minha recomendação do filme, bastante interessante, contundente e honesto. Ainda não está disponível em DVD e, infelizmente, acho que uma exibição nos cinemas brasileiros é improvável. De qualquer forma, pode ser encontrado para baixar na internet, mas sem legendas. Quem é Dayani Cristal? Bora treinar o espanhol e o inglês, pessoal… Vale a pena! Para assistir ao trailer do documentário, clique aqui. Link no IMDB.

“Sem guardas, sem controles. Aqui não se necessitam passaportes. Talvez assim devessem ser todas as fronteiras.” – Gael García Bernal, sobre a fronteira entre a Guatemala e o México