Malévola (Maleficent. 2014).

malevola-2014
Malévola – A Amargura do Feminino

De forma geral, o filme trata da iniciação feminina frustrada da protagonista. Débutant, em francês, quer dizer iniciante, e corresponde à tradicional festa de comemoração de quinze anos de uma jovem. Em países europeus, essa festa, uma espécie de rito de iniciação, caracterizava o momento em que a adolescente era, pela primeira vez, apresentada como mulher à sociedade, e onde possíveis pretendentes também compareciam. Apesar do filme referir-se à idade de 16 anos, o conto original da Bela Adormecida indica a idade de 15 anos, que é a do Début.

A iniciação feminina e o baile de debutante.

A iniciação feminina e o baile de debutante.

No entanto, o processo de tornar-se mulher, para Malévola, foi frustrado: seus sonhos, expressos na sua vitalidade e na exuberância do reino dos Moors, dão lugar a uma profunda depressão, que torna tudo escuro e pesado. Essa fase negra de Malévola corresponde aos cem anos de sono que ela impõe a Aurora, que personifica, para a fada má, o despertar de sua consciência feminina, mesmo que sem a participação de seu contraponto masculino, que antes era figurado por Stephan.

Os chifres de Malévola possivelmente fazem referência ao aspecto masculino da fada, que não só é potencial, mas que chega a confrontar figuras masculinas exteriores, na forma do rei humano e de Stephan, que representam um lado masculino extremo, exacerbado, sem nenhum equilíbrio compensatório.

malevola e aurora

Malévola se envolve de novo com seu lado criança.

Algo que me chamou muito a atenção foi o fato de o pai de Aurora mandar a filha para longe de si com a finalidade de protegê-la. Parece ser uma atitude típica de homens que, querendo proteger o aspecto feminino, associado à figura da esposa e da filha, acaba isolando-o e isentando-o de qualquer relacionamento. É o que se observa em homens que, principalmente nos séculos passados, mantiveram relacionamentos sexuais com prostitutas, deixando a esposa para interações mais “puras” ou “santificadas”. Nota-se que Stephan, além da crueldade de vender o coração de uma mulher, isolou-se da filha e da esposa, a quem não atenta nem na hora da morte. Ele parece se preocupar inteiramente com a disputa de poder com Malévola, o que denuncia um forte complexo materno negativo. O homem projeta a mãe supercontroladora em todas as mulheres e procura dominá-las ou isolá-las. A fada má constitui sua própria alma (representada também pela esposa e pela filha), a quem impõe a clausura de uma grande cerca de espinhos. Nesse aspecto, a leitura do conto do ponto de vista da psicologia masculina é totalmente válida.

Entretanto, o contato de Malévola com seu lado criança (Aurora), sepultado pela presunção e pela ambição do novo rei, acaba por descongelar seu coração endurecido. Se esta não pôde despertar seu lado feminino pelo amor a outro homem, devido à decepção, ela se redimirá tornando-se mãe. Aurora é como se fosse mesmo filha da fada e do rei, ainda que por adoção. Uma filha que herda a maldição da mãe, mas que prenuncia seu despertar. O filme parece retratar um fato muito comum hoje em dia: quantas mulheres não acabam se iniciando na vida adulta tornando-se primeiramente mães solteiras, devido à frustração de um amor, ou por não conseguir confiar em um, pela falta de um modelo masculino. Observe-se que nem Malévola, nem o rei Stephan, quando meninos, tinham pais vivos.

As três Fadas Madrinhas e Aurora.

As três Fadas Madrinhas e Aurora.

O único relacionamento que a fada tem com o masculino é através do corvo Diaval. Esta interação não evolui para algo mais profundo, mas pelo menos o faz até o ponto de ele ganhar certa autonomia, quando insiste para que a fada prepare o príncipe para que beije Aurora e a desafia a transformá-lo em verme ou pombo, pois não mais se importa. Por outro lado, é típica a superficialidade das personalidades das fadas madrinhas, boazinhas, santinhas, mas totalmente inexperientes, sem nenhum dote para a lida diária do lar, ao contrário de Malévola, que praticamente cria Aurora. O mesmo desenvolvimento ocorre com Nina, personagem do filme “Cisne Negro”, que precisa conscientizar seu lado sombrio para representar com brilhantismo a peça do mesmo nome. Isso denuncia um aspecto importante para o desenvolvimento da personalidade: ninguém se torna grande da noite para o dia, ou por simples magia. As maiores personalidades sofreram muito e foram forjadas no embate interno de qualidades e defeitos, de aspectos luminosos e tenebrosos. Parafraseando Jung, as grandes alturas só são atingidas a custa da mesma proporção de enraizamento em lugares mais profundos no solo.

Malévola, inicialmente, se identifica com seu lado sombrio, pois rejeita a sua identidade de moça bela e boa, a qual foi vilmente desprezada por Stephan. Mas percebe a necessidade de relativizar também sua sombra, e assim passa a ter disponíveis os dois modos de ser: a boa e a má, para usar de acordo com as circunstâncias, sem se identificar inteiramente com uma ou com a outra.

Phillip_e_Aurora_MalevolaO final do filme é trágico para Stephan. O embate com uma pessoa que alcança maior integridade e maturidade só pode finalizar com a vitória desta, ainda mais quando chega ao ponto de recuperar as próprias asas, antes presas do antigo captor. Quando a rigidez pessoal alcança um nível extremo, só a morte pode compensar esse tipo de existência, que, aliás, equivale em vários aspectos às qualidades daquela. Aurora une então os reinos humano e sobrenatural, consciente e inconsciente. E ainda aponta para um promissor relacionamento com o aspecto masculino, representado pelo príncipe Philip.

(Leia mais a respeito: “A Bela Adormecida – a iniciação ao feminino“; e “A origem do Eu“)

Por Charles Alberto Resende.

A Lição de “Guerra Mundial Z” (2013): Não Ter Repulsa ao Sofrimento.

Autor: Charles Alberto Resende.

Um vírus, semelhante ao da raiva, se espalha pelo mundo inteiro. As pessoas infectadas morrem e se transformam em zumbis, sensíveis a qualquer ruído, e loucas para morder e infectar outras pessoas.

Guerra Mundial Z” impressiona em seus efeitos especiais. Vemos milhares de zumbis se amontoando para vencer obstáculos, como se fossem água jorrando. Talvez por esse motivo, o filme deixa uma impressão de como é frágil a condição humana. Talvez a humanidade nunca seja ameaçada por uma “praga zumbi”, mas a forma como o homem interfere no equilíbrio da natureza pode produzir ameaças talvez tão mortais quanto ela. Recomendo que assistam primeiro ao filme, para que não se deparem com a explanação do final deste, o que poderia ser frustrante para alguns.

Von Franz (1992), em seu livro “Reflexos da alma”, que inclusive dá uma base histórica para a projeção – fenômeno em que as pessoas transferem para outras conteúdos de seu próprio inconsciente, tratando-as de acordo com estes – explana sobre a temática dos demônios e monstros que povoam mitos e outros contos da humanidade. Certos complexos autônomos do inconsciente podem conseguir força suficiente para aplacar o ego e possuir as pessoas. O “possuído” fica incapaz de ajudar a si próprio, pois os complexos desintegram a personalidade dirigindo-a a ações e pensamentos em torno de um único tema.

Essa unilateralidade particular do complexo autônomo aparece claramente representada no folclore e nos mitos de muitos povos, visto que os demônios têm quase sempre uma forma defeituosa ou parcialmente humana: os olhos ou o rosto no lugar errado (na barriga, nos órgãos genitais) ou em quantidade “errada” (Polifemo, que só tinha um olho, ou os seres maus de um olho ou três olhos nos contos dos irmãos Grimm). (VON FRANZ, 1992, p. 115). Então, ela conta um conto a título de ilustração:

Certo dia, dois irmãos caçando na floresta dão de cara com um grupo de pessoas festejando e bebendo. O irmão mais velho se sentiu atraído a participar, enquanto o mais novo se pôs de lado com medo, pois temia, e com razão, que se tratasse de um grupo de fantasmas, de espíritos de rãs metamorfoseadas em homens. Os irmãos pernoitaram numa cabana e dormiram na rede: o irmão mais velho, já bêbado, ficou com as pernas penduradas próximas ao fogo, e quando o mais jovem o avisou, ele gritou: ‘Akka, akka!’ [como faz uma rã, nota do editor do site], encolhendo imediatamente as pernas. Depois soltou-as de novo sobre o fogo e só então notou que os seus dois pés estavam carbonizados. Aí pegou uma faca, decepou os pés, arrancou as carnes e afinou o osso da perna, deixando-o como uma lança. Deitado na rede, ele espetava então os passarinhos que passavam. Ele não tirava os olhos do irmão e este, então, escapou às escondidas; o irmão doente corre atrás dele apoiando-se nas pontas dos ossos, e no caminho espetou com suas pernas feito lanças, uma corça pensando que era o irmão. O mais jovem voltou correndo para a tribo e avisou os outros. Eles atraíram o doente para fora da rede, cercaram-no e o mataram“. (VON FRANZ, 1992, p. 115-116).

Ora, a analogia com o filme é flagrante. No conto, o irmão mais velho adota como mania o ficar espetando os animais e as pessoas com as pernas decepadas, seu defeito adquirido. Ele perdera os pés, isto é, sua capacidade de estar em contato com a realidade. No filme, as pessoas morrem, mas continuam a “viver”, embora não como humanas, nem como animais, mas de forma estranhamente sobrenatural. Também não são mais deste mundo. Tudo o que sabem é morder as outras pessoas para contaminá-las. A analogia com certas manias recentes também é flagrante: o “curtir” do Facebook, as modas ultrarrápidas do consumo, as trocas por tecnologias mais atuais, enfim, o consumo pelo consumo. Simbolicamente, é pela boca que explícita e figuradamente mais “consumimos”, sejam alimentos, sejam outras pessoas, através da difamação, reduzindo os outros.

Porém, estranhamente, os zumbis não contaminam pessoas que já estão predispostas à morte, pessoas que estão contaminadas por qualquer doença que as predisponha à morte prematura. Em “História da arrogância”, Zoja (2000) explica como o homem contemporâneo é ansioso por conforto, e o quanto ele procura negar a morte, a doença, a feiura, usando, para isso, principalmente de métodos farmacêuticos. O homem procura afastar de si tudo o que lembra o aspecto do sofrimento relativa à existência humana. Ultimamente, sobressaem-se notícias de que certos cientistas estejam trabalhando à procura de uma panaceia, que contribuiria para a consecução da “vida eterna”. Entretanto, apesar disso, surgem novas doenças, novas guerras, novos tipos de comportamentos inconscientes destrutivos, entre eles, a drogadição. É como se a morte se impusesse de uma forma ou de outra, apesar de qualquer esforço em contrário. De volta à trama dos zumbis, a cura final se dá com a infecção das pessoas com uma espécie de soro que as contamina com algum tipo de doença, o que as faz aparentemente imperceptíveis aos “mortos-vivos”. Ironia: quando o ser humano abraça a morte e a doença, então os zumbis param de ataca-lo.

Não quero aqui fazer apologia à morte ou à doença, mas a mensagem do filme é clara ao afirmar que o remédio para o consumismo atual, seja na forma de dependência química, do consumismo desenfreado ou da insatisfação sem sentido, não é a repulsa ao sofrimento. Este deve ser aceito como condição natural do ser humano, e talvez mais necessário à vida e ao desenvolvimento do lado sentimental. Sem este, o homem não aprende a conviver com o outro, nem a viver consigo mesmo. Tal como já vivenciei várias vezes na prática psicoterápica, a fuga geralmente não é saudável, exceto enquanto o ego ainda não se encontra em condições de encarar de forma mais realista sua condição interna.

E isso talvez seja ainda mais uma pista para a situação do homem contemporâneo: seu desenvolvimento psíquico não está indo de encontro ao fortalecimento do ego, à sua maturidade, daí sua suscetibilidade, sua carência de sentido. Ele não é forte o suficiente para encarar a realidade da vida, sua dureza, sua crueza. Por outro lado, ele também está tendendo a abandonar, cada vez mais, o aspecto espiritual da vida, com a ajuda do qual podia lidar com as agruras do dia a dia. O médico está se transformando no sacerdote da alma, entendida aqui como uma espécie de fisiologia do corpo. E o filme denuncia isso através da vacina. Os personagens não atentam para a condição sobrenatural que os mortos-vivos personificam. Ela aponta para o lado espiritual. Os zumbis podem não mais atacar, mas continuam presentes no final. Procuram apenas incinerá-los, pois não há mais o que fazer, já que as pessoas foram reduzidas a mortos horríveis e animados. Qual será o próximo passo? Espero que não deixem de responder também a isso.

REFERÊNCIAS
Von Franz, Marie-Louise. Reflexos da alma. 1. ed. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1992.
ZOJA, Luigi. História da arrogância. São Paulo: Axis Mundi, 2000.

O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno. 2006)

Todo conto de fadas, sob a minha ótica, é um tanto quanto macabro. São intrigas, assassinatos, personagens complexas e muitas vezes irresolvíveis. Quase sempre temos tortura psicológica tão extrema que somente a realização de um sonho extremo pode livrar a personagem desta condição. Geralmente, nestes contos, a salvação se dá na figura do príncipe encantado – elemento valente, heroico, que nada teme e que nada sofre.

Na história de O Labirinto do Fauno não há príncipe encantado, visto que a história é a salvação para todos os males. Além disto, em vez dos desenhos com traçado ricos em cores, aqui o ambiente é triste e sombrio. Neste cenário, é a figura da menina Ofélia que traz alguma coisa de esperança. O Labirinto do Fauno é o conto de fadas idealizado pela protagonista mirim para oferecer-lhe uma saída para um mundo aparentemente sem solução.

O filme se passa no final da ditatura de Franco, na Espanha em 1944. Alguns remanescentes fascistas continuam a alojar em montanhas, escondidos da resistência civil, que aos poucos vão limpando a Espanha. Carmem está grávida do Capitão Vidal, fascista duro e onipotente – homem este que não agrada nem um pouco à Ofélia, filha apenas de Carmem, cujo pai havia morrido anos antes.

A partir deste ponto contém spoilers, ou seja, alguns trechos poderão conter partes da trama e isto poderá estragar o seu prazer, caso ainda não tenha assistido o filme.

Próxima de ganhar o bebe, o Capitão Vidal obriga aos seus subordinados a trazer a mulher e Ofélia para a montanha onde eles estão alojados, viagem está que desgasta totalmente a mulher, de modo que ela fica muito doente.
Diante de um cenário novo e assustador, Ofélia – que é leitora assídua dos contos de fadas – passa a fantasiar a respeito de uma fada que lhe leva para um Labirinto onde lá encontra um Fauno que lhe explica que ela era, na verdade, a princesa do mundo subterrâneo, a qual o seu pai lhe esperava há muito tempo. Para conseguir abrir o portal que levariam os de volta ao seu mundo, ela precisava cumprir algumas missões.
Na verdade a história é um subterfúgio para as coisas que Ofélia iria realizar. Era o ponto de fuga que a menina idealizou. Paralelamente a estas missões, a maldade do Capitão Vidal, por trás de um cenário de guerra e constante tensão, faz com que a menina simplesmente se esconda em sua própria história.
O final é muito comovente, pois da maneira como ela criou a sua história, Ofélia conseguiu enfrentar todos os seus desafios com bravura. Finalmente ela consegue abrir o portal e passar para o mundo subterrâneo, onde lá será feliz para sempre.

Guilherme Del Toro criou sua obra prima com este filme, que ganhou mais de 70 prêmios pelo mundo afora, incluindo três oscars. O Labirinto de Fauno é uma belíssima história, um conto sinistro sob a nossa realidade contada sob a perspectiva das fadas.

Coração Selvagem (Wild At Heart. 1990)

coracao-selvagemFabuloso!!! “O Mundo tem um coração selvagem e ele é tão estranho” – Fala de Lula Fortune (Laura Dern). Concordo com ela… Aliás, Lula, quem não gostaria de ouvir do amado uma música do Elvis? rsrsrs Estou contigo nessa, também gostaria que cantassem pra mim “Love me tender“… 🙂

Em entrevista, David Lynch costuma dizer que é seu filme favorito. Ainda não tive o prazer de ver todos os filmes desse diretor, mas sem dúvida alguma esse dominou, até então, meu coração (selvagem?).

Um filme com imagens arrebatadoras, uma trilha sonora excelente, um roteiro que dá margem à várias interpretações e ainda, trata-se de um conto de fadas moderno, contemporâneo, sensual e muito engraçado,  como não conquistar os corações?

Lula (Laura Dern) e Sailor (Nicolas Cage) são apaixonados um pelo outro e vivem essa paixão de maneira muito intensa. A mãe de Lula, completamente neurótica, tenta de tudo para atrapalhar esse romance. Bem da verdade, a neurose dela tem nome: paixão. Paixão por Sailor, namorado da filha.

Apaixonada também pela filha, dessas mães possessivas que não permitem os cordões umbilicais rompidos, segue à caça do casal apaixonado que vive seus momentos exóticos e eróticos na estrada.

Pra onde vão? Nem eles ao certo sabem. Seguem seus corações… Combinemos! É um mapa e tanto, não?

Achei curioso a presença de tantas loiras no filme. Mais curioso ainda é a forma como foi costurado aquilo que faz parte do real e da fantasia dos personagens.

Muito bom o filme.

Por Deusa Circe.

Coração Selvagem – Wild At Heart

Direção: David Lynch

Gênero: Aventura, Drama

EUA – 1990

Curiosidades:

– Durante as filmagens, Laura Dern desmaiou depois que Lynch pediu para ela fumar quatro cigarros ao mesmo tempo em uma só tragada.
– A voz das canções que o Sailor canta é do próprio Nicolas Cage.
– O casaco de pele de cobra que Cage usa no filme é do próprio ator.
– Cage deu o casaco a Laura Dern no fim das filmagens.

Por: Deusa Circe.