Uma Longa Viagem (2013). Para Encarar de Frente Seu Pior Pesadelo!

uma-longa-viagem_2013Por: Valéria Miguez (LELLA).
uma-longa-viagem_2013_02Em uma trama que retrata prisioneiros britânicos em plena Segunda Guerra Mundial, tendo entre eles engenheiros e ainda mais a construção de uma ferrovia… o que vem de imediato à lembrança é o “A Ponte do Rio Kwai” (1957), do Diretor David Lean e que eternizou o personagem de Alec Guinness até por odiá-lo em um certo momento. Longos anos se passaram e eis que um outro filme surge trazendo também esse pano de fundo, é o “Uma Longa Viagem“, do Diretor Jonathan Teplitzky. Se com o personagem do primeiro filme eu fiquei na torcida para que detonasse a tal ponte, com o desse a minha torcida foi para que não fizesse algo. É! Por vezes a vida nos leva a detonar pontes, mas o destino não diz qual, nem porque, nem muito menos aquela que ao atravessar levará ao encontro de algo que até pode vir a ser um outro divisor de água em nossas vidas…

uma-longa-viagem_2013_03Uma Longa Viagem” é um filme baseado numa história real: nas memórias de Eric Lomax de quando fora um dos prisioneiros dos japoneses em plena Segunda Grande Guerra. É por ele que o conhecemos partindo de um ponto presente – que no decorrer saberemos o porque -, até o seu passado mais tenebroso. Será um mergulho sem dó nem piedade. Nesse seu tempo presente é alguém que tem como um hobby trens: dos vagões às ferrovias, passando pelos horários… A bem da verdade é um entusiasta no assunto. Do passado, quando em campo de batalha em plena guerra ficara responsável pelo rádio: as escutas da época. Até que seu superior diz a todos que irão se render e ordenando que antes destruíssem tudo que pudesse comprometer a tropa. Lomax então resolve guardar uns componentes de um rádio. Um ato que sairá bem caro mais adiante.

uma-longa-viagem_2013_01Com a rendição parte de seu grupo por serem engenheiros são levados aos empecilhos da construção de uma ferrovia: a que ligaria a Tailândia à Birmânia. Quanto aos demais prisioneiros seguiram pela construção propriamente dita: desmatando, assoreando, fazendo barreiras de contenção, na colocação dos trilhos… O trabalho braçal, pesado, cheio de perigos até pela selva e abaixo de chicotes. Enquanto esse trabalho avançava – e com ele muitas baixas iam somando àquela que ficaria conhecida como a Ferrovia da Morte -, o pequeno grupo resolve fazer um rústico rádio de onde passaram a ouvir notícias de fora. Desejosos de com elas tentar levantar a moral dos demais prisioneiros, acabam sendo descobertos e…

uma-longa-viagem_2013_05Uma Longa Viagem” ora se encontra num tempo presente, 1980, no norte da Inglaterra, com Eric Lomax já um homem adulto. Ora nos leva a viajar juntos com ele ao passado dele então um jovem prisioneiro de guerra. Nesse seu presente encontra-se recém casado com Patti (Nicole Kidman). Apaixonados, mas… Ela passa então a ver que ele é um ser atormentado e tenta um jeito de ajudá-lo. A presença dela traz mudança em sua rotina até por ele ser um cara bem metódico. O que talvez possa ter contribuído para que seus traumas de guerra viessem à tona. Na tentativa de ajudá-lo, Patti vai em busca de um grupo que vivenciaram o mesmo pesadelo, e dai se reúnem justamente para tentarem superar. Por lá Patti encontra-se com Finlay (Stellan Skarsgård) pedindo que lhe conte o que houve. Ele então conta a parte que ele cabe, não sem antes tentar demovê-la, pelo conteúdo muito cruel como também que lhe é muito penoso relembrar desse período.

uma-longa-viagem_2013_04Traga de volta o passado somente se for construir algo a partir dele.”

Mas é por Eric Lomax que conheceremos uma parte dessa história que nem eles sabiam: as das torturas. Até que Finlay mostra algo a ele: fizeram um memorial numa das estações da tal ferrovia. Justamente onde foram torturados. Ele então resolve visitar literalmente seu passado viajando até lá. Onde então fica novamente frente a frente com o seu pior pesadelo: o carrasco mor, o oficial Takeshi Nagase (Hiroyuki Sanada). Não ficará pedra sobre pedra nesse reencontro.

uma-longa-viagem_2013_06E nesse passado temos o jovem Lomax interpretado por Jeremy Irvine (de “Cavalo de Guerra”). Numa excelente atuação. Mas sem sombra de dúvida a magistral performance é a de Colin Firth. Seu Lomax nos leva a voos de doer na alma até ao mostrar o que todas as guerras deixam como “saldos” em quem dela participa. Vilões para um lado, Heróis para o outro, mas nos campos de batalha são homens, jovens à mercê de uma guerra cujos “donos” nem dela participam… É nessa sua volta onde fora torturado que terá um novo dilema a ser superado… Onde a minha torcida fora para que não o fizesse… Bem, posso adiantar apenas que chorei junto com o Eric Lomax de Colin Firth.

The-Railway-Man_posterO Diretor Jonathan Teplitzky ainda não está no mesmo patamar de David Lean, até pela pouquíssima bagagem, mas com certeza está no caminho certo! Pois temos em “Uma Longa Viagem” um novo ângulo da Segunda Guerra Mundial: contada por um que a vivenciou e que conseguiu sair vivo dela. De nos deixar em suspense até o final. Num timing perfeito entre passado e presente. Efeitos de cores em Fotografia. Trilha Sonora ótima! Atuações catárticas: um soco no emocional de quem assiste. Que embora a personagem de Nicole Kidman não tenha tido altos voos, todos sem exceção tiveram grandes performances no conjunto dessa obra que veio para ficar. Agora, é no reencontro entre Lomax e Nagase o ponto alto do filme. Até por conter nessas cenas o peso de anos do emocional até então guardados tanto de um como do outro. Aplausos entusiásticos para Colin Firth e Hiroyuki Sanada! Bravo! Num filme Nota 10!

Uma Longa Viagem (The Railway Man. 2013)
Ficha Técnica: na página no IMDb.

As Vantagens de Ser Invisível (The Perks of Being a Wallflower. 2012).

as-vantagens-de-ser-invisivel_2012_personagensPor Francisco Bandeira.
Em um mundo cheio de pessoas chatas e enfadonhas, ou simplesmente “normais” como manda a sociedade, as pessoas diferentes, malucas ou revolucionárias sempre se destacam, sejam de forma boa ou ruim. Mas há também aquelas pessoas que acham uma vantagem serem invisíveis.

O filme mostra as afetações que um jovem pode ter se não possuir uma boa base familiar. Charlie (Logan Lerman) parece pertencer a outro mundo, até conhecer Sam (Emma Watson) e Patrick (Ezra Miller), dois jovens que parecem livres, que não ligam para a opinião dos outros e vivem a vida da forma que acham melhor para eles. Logo eles adotam o protagonista, mostrando pra ele a vida que o mesmo está desperdiçando se fechando em seu mundo.

A obra realmente é repleta de ternura e melancolia, tendo um final sem muito impacto (sim, não achei foda), porém profundo e tocante. A mistura entre melancolia e inocência casa perfeitamente com a proposta do livro, além de ter uma visão bem interessante sobre essa geração.

Ainda que você não goste da fita, vale pelo questionamento sobre relacionamentos x amor verdadeiro e a cena que Charlie se sente infinito. Todos nós devíamos sentir essa sensação, talvez seja essa a real vantagem de ser invisível.

As Vantagens de Ser Invisível (The Perks of Being a Wallflower. 2012). Ficha Técnica: página no IMDb.

Sedução e Vingança (Ms.45. 1981)

seducao-e-vinganca_1981Por Francisco Bandeira.

Diretor Abel Ferrara

Ferrara subverte as regras de filmes sobre estupro e vingança, mostrando a cidade de Nova York como uma verdadeira selva petrificada, transformando um simples entretenimento de ação em um estudo sobre a sociedade, com uma violência descontrolada e que oferece algo muito mais profundo sobre a natureza humana do que aparenta, e ainda dando uma nova vida ao (sub)gênero exploitation.

seducao-e-vinganca_1981_02A trama de Ms. 45 gira em torno de Thana (Zoë Lund, espetacular), uma jovem tímida que está indo para casa após mais um exaustivo dia de trabalho. No caminho, ela é surpreendida por um homem (Abel Ferrara, parecendo um antagonista do subgênero slasher) e acaba sendo violentamente estuprada por ele. Desesperada, ela só pensa em ir embora daquele lugar, porém, ao chegar em casa ela é surpreendida por um intruso que, ao não encontrar nada de valor, resolve estuprá-la. A partir daí, a moça sai em busca de vingança, carregando uma pistola .45 com ela.

É através dessa premissa insana que Abel Ferrara trabalha de forma bastante inteligente a violência constante em seu filme, nunca soando um simples sádico, pois há sempre um motivo bastante coerente a ser abordado através deste tema. Aqui, o cineasta mostra que sua protagonista começa uma matança sem fim, primeiro por proteção, em seguida se transforma em um simples ato de vingança e chega ao extremo com a protagonista realmente ficando viciada com toda aquela sanguinolência.

seducao-e-vinganca_1981_01O cuidado na criação da atmosfera da obra é realmente singular. Desde a fotografia ficando cada vez mais escura e opressiva, da trilha sonora perfeitamente encaixada na obra, da adesão de maquiagem e mudança do figurino usados pela protagonista durante a projeção, que a tornam realmente intimidante. No modo que Ferrara filma os becos da cidade, abusando do plano fechado (close-ups) e frontal.

A composição da persona de Thana feita por Lund é fascinante, desde a mudança em seu olhar do primeiro para o segundo estupro, da menina abalada, amedrontada e traumatizada, passando pelo espanto e a perca de inocência, indo até o grito silencioso, do olhar desolado até a naturalidade da transformação em uma espécie de femme fatale, uma vigilante noturna em uma incessante busca de vingança contra o sexo masculino.

seducao-e-vinganca_1981_03O mais interessante na direção de Ferrara está na busca de planos longos durante as cenas que a protagonista é estuprada, mantendo sempre o foco no rosto dela, evitando o passeio pelo corpo da jovem, mostrando claramente que sua intenção é colocar o espectador na perspectiva da mulher sendo abusada, antecipando isso quando sua câmera filma as calçadas que estão preenchidas por homens lascivos, devorando as fêmeas com seus olhos e instinto de animais predadores.

A simbologia da obra também é bastante notável, desde o ferro de passar, a maçã de vidro vermelha, o homem colocando o saco no sexto do lixo (lembrando o modo que se coloca uma camisinha), o cachorro, os objetos cortantes (penetrando a carne) e até mesmo a sua arma.

seducao-e-vinganca_1981_04Thana, a jovem doce, calada e assustada, que agora encontra sua voz em disparos de uma. 45, que acha o beijo um ato agressivo, que exala terror, ainda mais vindo de homens que exalam confiança. Confiança essa que a protagonista adora exterminar de seus rostos, substituindo-a por medo, sentindo prazer por fazer seres tão dominantes parecerem tão frágeis. Mas ela tem um ponto fraco, as lembranças em sua mente, e que ver a penetração como uma sombra que a persegue, sabendo que a mesma pode significar seu fim.

E isso culmina em um clímax bastante complexo e intrigante, quando o cineasta subverte os papéis de mocinha x vilão, nos deixando com uma enorme dúvida na cabeça: afinal, para quem devemos torcer no final? Thana é sim uma pessoa pura que foi corrompida, se transformando em uma espécie de anjo da morte – e que sua missão é trágica e prazerosa ao mesmo tempo. Ms. 45 vai muito além do que um simples filme de vingança, seguindo como um perfeito exemplo de que a exploração também é arte.

Por Francisco Bandeira.
Avaliação: 9.5

A Gangue (Plemya. 2014)

A Gangue_2014Por: Eduardo Carvalho
O cinema é uma arte que mistura vários elementos e linguagens. Texto, som, luz, cenografia, movimentos de câmera guiam o espectador para que ele assimile e desfrute um filme. O que dizer, então, quando um dos elementos fundamentais à compreensão está ausente?

Vencedor da Semana de Crítica em Cannes 2014, o ucraniano “A Gangue” traz uma proposta inusitada, talvez inédita nesses pouco mais de cem anos de cinema. Conta a estória de um rapaz que chega a um internato para adolescentes, e após sua iniciação, logo é admitido na gangue do título, um grupo de jovens estudantes que se impõem pela força sobre os demais e exploram a prostituição de suas colegas. A questão é que o filme é narrado e interpretado em linguagem de sinais, sem uma única linha de texto verbalizado, sem legendas, sem os conhecidos quadros explicativos dos filmes mudos. Sem música. Apenas a captação do som ambiente. Nada mais.

a-gangue_2014A sinopse indica uma obra com índices de agressividade e promessas de polêmica. E, logo após o primeiro longo plano da festa, é o que o filme entrega ao público. O protagonista chega ao local timidamente, e embora tente resistir, vai sendo enredado em um crescendo de tensão e violência, a ponto de ele próprio tornar-se extremamente violento. Até mesmo a relação afetiva que ele cria, pela própria natureza do envolvimento, torna-se parte decisiva de toda a brutalidade, contribuindo para o desfecho.

Com toda a força da estória em si, e o realismo incômodo de algumas sequencias, a ousadia da proposta narrativa é o que se sobressai. Para o público em geral, que não domina a linguagem de sinais, todo o desenvolvimento da trama é plenamente compreensível na sua totalidade. Isso é facilitado pela quantidade de planos-sequência, tanto estáticos quanto móveis, e os detalhes da comunicação entre os personagens em suas discussões tornam-se irrelevantes. Somada à da fala, a ausência de música – os sons presentes são passos, portas batendo, urros de dor – torna o espectador mais atento ao que se desenrola na tela; a vida real pode ter falas ou não, mas certamente não tem trilha sonora. A ausência de um melhor delineamento moral, com possíveis ambiguidades de cada personagem, o que poderia dar maior profundidade ao filme, abre espaço a uma brutalidade urgencial de determinados planos, inserida naturalmente em um filme com este conceito, que, mais uma vez, reforça a noção de que a produção de países europeus em crise, como a Ucrânia, reflete o momento pelo qual as pessoas estão passando. Nesse sentido, o filme segue obras como os recentes “Instinto Materno”, da Romênia, e o grego – e também polêmico – “Miss Violence”.

Se o primeiro longa do diretor Myroslav Slaboshpytskly passa ao largo de outras obras que se valem da ausência do texto falado, como o belo “Blancanieves”, e principalmente o reflexivo “As Quatro Voltas”, “A Gangue” é uma obra que aposta na utilização dos demais sentidos de percepção do espectador, ampliando as possibilidades da linguagem cinematográfica.

A Gangue (Plemya. 2014). Ucrânia. Direção e Roteiro: Miroslav Slaboshpitsky. Elenco: Grigoriy Fesenko, Yana Novikova, Rosa Babiy. Gênero: Crime, Drama. Duração: 130 minutos.

RELATOS SELVAGENS (2014). Rindo da Própria Desgraça!

relatos-selvagens-2014_cartazPor Eduardo Carvalho.
A vida contemporânea pode deixar a todos com os nervos à flor da pele. Problemas financeiros, emocionais, uma crise no casamento. O descaso do serviço público com o cidadão. Um xingamento aqui e ali, no meio do trânsito das grandes cidades.

Em cima de situações cotidianas, que a princípio poderiam ocorrer com qualquer um, Damián Szifron escreveu e dirigiu as seis estórias que compõem “Relatos Selvagens”. Estrondoso sucesso na Argentina, exagerando cada situação a ponto de deixá-la à beira do inverossímil, o filme faz rir de pequenas tragédias do dia-a-dia que tomam proporções absurdas, por conta da reação explosiva de cada protagonista. E o faz de forma engraçadíssima.

relatos-selvagens-2014_01O prólogo, que se apresenta como um encontro casual num avião, revela-se um maquiavélico plano de vingança do verdadeiro protagonista – que não aparece, mas apenas citado –, um músico erudito fracassado. Em seguida, uma garçonete hesita em executar sua vingança contra o responsável pela morte de seu pai, numa lanchonete largada à beira de uma estrada. O terceiro episódio é um bizarro embate digno de “Encurralado”, de Steven Spielberg, onde um simples xingamento na estrada leva a um duelo entre os motoristas de um Audi último tipo e de um sedã caindo aos pedaços, ao som de um hit romântico dos anos 80. O episódio com Ricardo Darin mostra mais um homem comum, de temperamento explosivo, que se vê às voltas com a burocracia do trânsito, perdendo a paciência e a razão, ao utilizar suas habilidades para se vingar do sistema – o personagem é perito em implosões. O penúltimo episódio, o único com final verdadeiramente trágico e não menos irônico, mostra uma família abastada tentando livrar o filho, que atropelou uma grávida, das garras da justiça, com um jogo de corrupção. Por fim, a última estória mostra uma festa de casamento explodindo de ressentimentos, violência, sexo e sangue, todos misturados no bolo dos noivos.

A simples sinopse de cada estória não é o bastante para revelar o tom mordaz e hilariante que Szifron imprimiu à obra como um todo. O único elemento que liga as estórias é a barbárie, e é o elo que basta. Cada protagonista teve seu ataque de nervos almodovariano – não por acaso, o diretor espanhol e seu irmão produzem o filme –, perdendo absolutamente o controle de suas ações, pois sente que perdeu o controle de sua vida. De modo planejado ou passional, cada um deles expressa o rancor de vítima que é de uma sociedade em crise, econômica e de valores, onde o menor fator pode transformar-se na gota d’água que irá gerar uma discussão, uma briga, um homicídio.

A montanha russa de emoções com que Damián Szifron lança os espectadores de “Relatos Selvagens” une o nonsense do Monty Python à brutalidade de Quentin Tarantino para retratar, de forma terrivelmente engraçada, os absurdos de que o homem do século XXI é capaz em um dia absolutamente normal.

Who is Dayani Cristal? (2013)

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“Para mim é muito frustrante saber que alguém que tinha sonhos, acabou se transformando em um número, estatística.”

Acompanho a trajetória desse documentário desde muito antes de poder assisti-lo. Assim que me lembro de ter lido uma crítica muito ruim quando da exibição do filme no Festival de Cinema Sundance, no qual, aliás, ele foi premiado como melhor documentário. Acreditando nessa tal crítica, pensava comigo mesma: “Ainda que seja ruim, merece o reconhecimento por tratar de um assunto tão delicado quanto cotidiano e essencial de ser pautado”. Estritamente, a imigração clandestina para os Estados Unidos através da fronteira com o México. De maneira mais abrangente, o questionamento de inúmeras condições pré-estabelecidas e naturalizadas, mas que, na realidade, são como tudo, uma construção ao longo do processo histórico: as fronteiras, o capitalismo, a exploração do homem pelo homem, a hierarquização das pessoas e de suas vidas, a valoração da mercadoria, entre muitas outras.

Pensava eu que esse filme seria como tantos outros que se propõem a discutir questões sociais e políticas importantíssimas, mas que falham por vários motivos, como o excesso caricatural na construção de situações e personagens, por exemplo. Insiro nessa linha o filme Cronicamente inviável (Sérgio Bianchi, 2000) e Déficit (Gael García Bernal, 2007). Ambos têm a proposta de retratar as relações entre a classe média e as classes populares, mas acabam se tornando caricatos e chatos. Em outra chave, temos o filme O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), cuja representação da sociedade pernambucana nos trouxe aos olhos as sutilezas da exploração cotidiana e das relações entre classes, tão mais perversas quanto mais invisíveis.

Pois bem, ainda que todos esses três filmes aqui citados sejam ficções e Who is Dayani Cristal? seja um docudrama, acho plausível dizer que ele segue nessa segunda linha de filmes que vão tratar de questões essenciais ao entendimento da sociedade sem fazê-lo de forma caricatural, simplificadora e/ou redutora. Com um posicionamento político bastante claro desde seu início, o documentário cumpre bem seu papel de denúncia e militância sem se tornar chato, maçante ou apelativo.

O filme se desenvolve em duas vertentes: a primeira, claramente documental, que retrata as dificuldades de identificação de corpos de imigrantes clandestinos encontrados no deserto do Arizona, tendo como mote um corpo com a tatuagem “Dayani Cristal” no peito. A segunda vertente, misto de drama e documentário, é aquela que mostra a reconstrução feita por Gael García Bernal da trajetória deste hondurenho encontrado morto. Não há aquelas cenas às quais costumeiramente adjetivamos como chocantes: sangue, violência, agressão. Mas há sangue, violência e agressão, expressas de maneira sutil, assim como é sutil tudo que faz com que as situações retratadas no documentário possam ocorrer todos os dias em diversos lugares sem que seu questionamento consiga bater de frente com a política que garante sua reprodução.

E esse pra mim é o grande acerto do documentário; colocar a forma fílmica e a forma social em compasso. A violência social denunciada pelo documentário é praticada na realidade cotidiana com tanta sutileza como nos é apresentada no filme. A agressão diária que faz com que homens e mulheres sejam obrigados a abandonar seus países deixando para traz sua história, sua identidade e as pessoas a quem querem bem para se arriscarem numa jornada permeada por perigo, carência e invisibilidade é tida por quase todos como natural ou, quando muito, irreversível. Daí que se reproduza há tanto tempo, cada vez de maneira mais qualificada, otimizada, deixando para trás centenas de milhares de pessoas, consideradas menos importantes e, portanto, de morte aceitável; uma estatística.

Outro ponto bastante positivo do documentário é logo no começo já deixar claro que estamos diante de uma construção metonímica, que parte de um pedaço para exemplificar o todo: a trilha dos créditos iniciais é a canção Latinoamerica, da dupla porto-riquenha Calle 13, da qual gosto muito e que, na minha opinião, é uma das produções artísticas que mais bem captaram o que é ser latino-americano e onde nos inserimos socialmente, como devemos nos portar: de pé e em luta. Como o próprio nome da canção diz, quem canta é todo latino-americano e, portanto, a história não é apenas do homem com a tatuagem “Dayani Cristal”, mas sim de muitos e tantos outros irmãos de continente e de trajetória.

Fica a minha recomendação do filme, bastante interessante, contundente e honesto. Ainda não está disponível em DVD e, infelizmente, acho que uma exibição nos cinemas brasileiros é improvável. De qualquer forma, pode ser encontrado para baixar na internet, mas sem legendas. Quem é Dayani Cristal? Bora treinar o espanhol e o inglês, pessoal… Vale a pena! Para assistir ao trailer do documentário, clique aqui. Link no IMDB.

“Sem guardas, sem controles. Aqui não se necessitam passaportes. Talvez assim devessem ser todas as fronteiras.” – Gael García Bernal, sobre a fronteira entre a Guatemala e o México