Kumiko, a Caçadora de Tesouros (2014). Realidade e Fantasia Tornando uma Coisa Só!

Kumiko-a-Cacadora-de-Tesouros_2014_posterFargo_1996Por: Eunice Bernal.
Em “Kumiko, a Caçadora de Tesouros” o argumento, a principio, é bem básico e fácil de entender, mas para que a história tome forma e faça sentido ao espectador, é recomendável antes de tudo, ter conhecimento do longa “Fargo” dos Irmãos Coen, saber qual é a ideia central, e inteirar-se dos fatos que ocorrem ali porque todo o desenrolar do conto de fadas com a protagonista japonesa tem a ver com esse clássico estadunidense com toques de humor negro. Portanto, para continuar sabendo dessa história, é bom relembrar, ao menos, o que se passa em “Fargo“. Evidentemente que se entenderia de qualquer forma a história da personagem-título “Kumiko, a Caçadora de Tesouros“, mesmo não tendo assistido ao aclamado dos Irmãos Joel e Ethan ou de ter, ao menos, lido a sinopse. É mais para que se possa situar no enredo.

Fargo_cenas-do-filmeKumiko e Fargo: duas obras interessantes de diretores de mesma nacionalidade; talvez o diretor David Zellner seja admirador dos criadores de Fargo, e como forma de homenageá-los, usou como ponte, uma cena interessante para traçar o paralelo entre as duas histórias, e nessa bela roupagem metalinguística o gancho ao tesouro é uma mala recheada de dólares, enterrado na neve em Dakota do Norte, seria o predicado para a garimpagem de um outro tesouro invisível na sétima arte: o próprio filme Fargo, ou uma cópia em VHS sendo desenterrado, eis a questão. Só mesmo alguém com um pouquinho de perspicácia para ter uma imaginação fértil e ter bolado essa cena.

Então relembrando aqui a sinopse de Fargo (1996): Em 1987 em Fargo, no Dakota do Norte, o gerente (William H. Macy) de uma revendedora de automóveis, ao se ver em uma delicada situação financeira, elabora o sequestro da própria esposa (Kristin Rudrud) e faz um acordo com dois marginais, que ganhariam um carro novo e metade dos 80 mil dólares que seriam pagos pelo seu sogro, um homem muito rico. Mas uma série de acontecimentos não previstos cria logo de início um triplo assassinato e uma chefe de polícia grávida (Frances McDormand) tenta elucidar o caso, que continua provocando mais mortes. Apesar de o filme ser declarado como “baseado em fatos reais”, a história passada em Fargo foi na verdade elaborada pelos próprios Irmãos Joel e Ethan Coen, roteiristas do filme, ou seja, uma inverdade.

Kumiko_cena-do-filme-03Quanto a sinopse de “Kumiko, a Caçadora de Tesouros” (2014): Uma solitária japonesa convence-se de que uma sacola de dinheiro enterrada em um filme de ficção é, de fato, real. Abandonando sua vida estruturada em Tóquio para ir viver na região congelada e selvagem Minnesota, ela embarca em uma busca impulsiva para procurar sua mítica fortuna perdida.

Em Kumiko também o roteirista optou em declarar em letras garrafais nos créditos iniciais tratar-se de obra baseada em acontecimentos verídicos, só que até o momento, pelas minhas pesquisas, isso não foi confirmado e nem negado. Chego à conclusão que o autor do argumento por ser apóstolo dos Coen optou por brincar com a situação repetindo a dose nesse parque de diversões.

O fato é que Kumiko, a balzaquiana, acredita piamente que o tesouro (a mala recheada de dólares) continuava lá, em Fargo, Dakota do Norte enterrada próximo àquela cerca com um objeto vermelho fincado no solo marcando o local exato (talvez ela tenha pensado que mesmo sendo um filme, aquele dinheiro era de verdade e depois das gravações esqueceram de pegar de volta; talvez ela não soubesse que uma boa parte do filme tivesse sido rodado no Canadá, por ser o frio lá mais rigoroso do que nos EUA, e na época das gravações na terra do Tio Sam era primavera.

Kumiko_cena-do-filmeKumiko existe? Pessoas como ela sim, claro, que existem aos montes por aí, que vivem no mundo de Matrix, não sabendo distinguir a linha tênue que separa a realidade da ficção.

Inverossímeis ou não, duas obras capazes de nos causar sensações de desconforto, de nos tirar do sério e nos deixar participar dessa viagem ao mundo da magia e encanto que o cinema proporciona; às vezes é primordial sair da zona de conforto, enfrentar trânsito para ver um especial como este num telão!

Kumiko não é só ingênua; dentro dessa jovem mora um pouco de maldade e de malícia. Desgostosa com o mundo real, não ligando sequer para a própria aparência, tampouco para a mãe, para trabalho e nem para os conhecidos e uma amiga que encontra na rua ou olhar uma criança deixada aos seus cuidados; destrata seu chefe, jogando suas roupas numa lixeira, cuspindo em sua bebida e roubando seu cartão de crédito para comprar sua passagem para viajar em busca de um suposto tesouro no outro lado do mundo, digno de uma criatura exótica…

Kumiko_cena-do-filme-04Considero o filme Kumiko, do diretor e roteirista David Zellner com colaboração de Nathan Zellner no roteiro – na história do cinema moderno pra lá de formidável, uma joia rara, um tesouro que a sétima arte deve guardar a sete chaves com carinho no museu do cinema e para os cinéfilos sempre que quiser poder ver e rever. Achei formidável a própria história que aconteceu no filme referência Fargo como a que aconteceu com a jovem no Japão ter entrado de cabeça nesse mundo da imaginação e mesclado a sua própria realidade, não sabendo onde começa um e termina o outro. Parece que novamente realidade e fantasia se confundem tornando uma coisa só. Já testemunhamos tanto trabalho original e criativo no mundo do Cinema e parece que de vez em quando somos surpreendidos como agora nessa história de KUMIKO de roteiro incrível.

No prólogo, a protagonista é apresentada caminhando pela praia segurando um mapa e ela parece que estava predestinada a encontrar um tesouro perdido numa gruta naquela proximidade e acaba encontrando um filme em VHS enterrado lá, e essa fita ela viu muitas vezes e que dizia ser baseado em fatos reais. Talvez ela tenha acreditado que realmente fosse fatos reais e alguém enterrou ao lado de uma cerca uma mala contendo muito dinheiro como se isso fosse um fato real e não encenação.

Sim, Fargo é um tesouro! E Kumiko – a cinéfila que com seus mapas vive por ai garimpando ótimos filmes – é mais um filme com roteiro inteligente e que certamente vai para a minha galeria dos instigantes. Curti!
Eunice Bernal

Kumiko, a Caçadora de Tesouros (Kumiko, the Treasure Hunter. 2014)
Ficha Técnica: na página no IMDb.

O Bullying nos Cinemas

Por: Lidiana Batista.

Dentre as várias manifestações artísticas que possuímos, o cinema é a que mais consegue atingir um número maior de pessoas independente do nível social, religião, raça ou sexo. Por ser o mais popular, em termos de acessibilidade, o cinema pode ser visto como entretenimento, fonte de reflexão ou ambos.
Sabe-se que fatos da vida real inspiram roteiristas a criarem suas películas e no caso do Bullying não é diferente, pois foram analisados dois filmes com esta temática: Tiros em Columbine de Michael Moore, 2002 e Bang, Bang! Você morreu! de Guy Ferland 2002, pelo fato de que, no primeiro trata-se de um documentário sobre o massacre ocorrido na Columbine High School, na cidade de Littleton, Colorado, e o segundo por ser baseado em uma peça homônima que mostra de forma explícita o Bullying nas escolas americanas.
O documentário do cineasta Michael Moore, lançado em 2002, investiga o que motivou dois jovens do ensino médio, Erick Harris com 18 anos e Dylan Klebold de 17 anos, a entrarem armados no colégio e assassinarem 12 estudantes, 01 professor, deixarem mais de 20 pessoas feridas e suicidarem-se em seguida. Moore investigou tão a fundo o caso que o documentário mostra de forma explícita como é fácil conseguir uma arma nos Estados Unidos e como funciona a cultura bélica americana.
No decorrer da película ele também entrevista alunos que estudavam e que presenciaram o massacre, inclusive o roqueiro Marlyn Manson, que foi considerado bode expiatório já que os dois jovens em questão ouviam suas músicas.  Manson ficou dois anos sem poder ir ao estado do Colorado. Em entrevista presente no documentário, Michael Moore pergunta a Manson o que ele falaria para os estudantes de Columbine. O músico categoricamente responde: “Eu não diria nada. Eu apenas os ouviria. Coisa que certamente ninguém nunca fez.”
Moore também entrevista o criador do desenho South Park, Matt Stone que estudou na mesma escola onde ocorreu o massacre. Stone aborda os maus tratos que ele sofreu no colégio e os que os dois jovens também sofreram, pois segundo as investigações, Erick e Dylan eram constantemente humilhados e excluídos pelos colegas. Stone diz:
“Você acredita na escola e nos alunos, mas os professores, conselheiros e diretores não cooperam. Eles nos obrigam a ir bem na escola dizendo: ‘se fracassar agora, será um fracassado para sempre’. Todos chamavam Erick e Dylan de bichas. Eles pensavam: ‘ se sou bicha agora, serei para sempre’.
Quem dera alguém tivesse dito a eles: ‘Cara o colegial não é o fim. Falta um ano, um ano e meio. Você ainda vai morar sozinho’. Já na sexta série eles começam a martelar na sua cabeça: ‘Não erre, pois se errar, morrerá pobre e sozinho’. E você pensa: ‘ o que serei agora, serei para sempre’. É totalmente o contrário, muitos maus alunos se dão bem depois. Se tivessem falado com eles, isso não teria acontecido.”
É fato que Michael Moore é sensacionalista, pelo menos para mim. No entanto, o documentário é bastante pertinente para se trabalhar em sala de aula sobretudo com alunos do ensino médio.
Já em Bang, Bang! Você Morreu!, dirigido por Guy Ferland de 2002, é baseado na peça homônima do escritor americano William Mastrosimone lançada em 1999, e que coincidentemente ou não, foi encenada pela primeira vez em Oregon, onze dias antes do massacre de Columbine.
O filme conta a história de Trevor Adams, um jovem estudante do ensino médio, considerado bom aluno, e que após ter sido arremessado em uma lixeira, por alguns integrantes do time de futebol americano da escola, muda seu comportamento e decide fabricar uma bomba ameaçando explodir um dos prédios da escola. Apesar da bobam ser de mentira, isso causou pânico generalizado na cidade.
Trevor passa então a ser descriminado por colegas, professores, vizinhança e até mesmo pelos pais. A única pessoa que o apoiava era o professor de cinema e tetro Sr. Duncan, que propõe aos alunos encenarem a peça “Bang, Bang! Você morreu!”. No entanto, a peça não é bem vista pela comunidade, simplesmente pelo fato de o título remeter a um ato de violência e também porque o professor queria que Trevor fosse o protagonista, ou seja, o assassino.
O que a maioria dos professores não entendia, é que o objetivo do professor era fazer com que Trevor se encontrasse no personagem e descobrisse os reais motivos que o levaram a cometer a ameaça, mas principalmente, descobrisse os reais motivos que não o permitiram com que ele fosse adiante. A comunidade em geral acreditava que Trevor ao encenar a peça, poderia efetivamente se tornar um assassino, tal qual o personagem Josh da peça.
Em uma das cenas, é mostrado aos gestores da escola um vídeo feito por Trevor em que ele diz: “um empurrãozinho diante dos outros garotos, é algo muito relevante…especialmente quando você sabe que vai acontecer todos os dias. Você fica quase aliviado quando acontece…”

Vale ressaltar que em termos técnicos, ambos os filmes não apresentam mega produções e no caso de Bang, Bang! Você morreu! Nenhuma atuação é relevante. Mas fica a dica para professores interessados em discutir o tema com os alunos, pois tanto o documentário quanto o filme, trazem reflexões que podem ser debatidas em sala de aula.
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Próxima parada MOSCOU

E tudo o mais que as fronteiras do nosso imaginário permitir. O jogo de cena continua.
Eduardo Coutinho mais uma vez nos presenteia com o ótimo documentário MOSCOU. Para quem assistiu ao JOGO DE CENA, vai ter uma certeza: de que o diretor tomou gosto pela dramaturgia. Nota-se que ele se sente à vontade ao dirigir o elenco teatral. O elenco do Grupo Galpão recebeu de seu diretor Enrique Diaz o texto da nova peça somente no dia da filmagem. O texto a ser encenado, AS TRÊS IRMÃS é da autoria do clássico russo Anton Tchekhov. É a história de Olga, Masha e Irina, mais um irmão que moram numa província na Rússia, mas sonham voltar a Moscou.
O interessante no filme é a bagunça generalizada. Os atores, ora ensaiam, ora representam, ora falam de si mesmos e de algumas lembranças de infância, de lugares e sensações, não se sabe ao certo quando é real e quando é ficção; a linha tênue que separa os dois lados se rompeu. E o ensaio do ensaio dos textos fica parecendo que nada foi ensaiado. Já foi a algum ensaio aberto ao público? Na verdade é isso que se passa no filme. Repassam o texto juntos ou separados, brincam, comem, namoram, alguém faz declaração de amor e não se sabe se é real ou não, e algumas coisas mais. Ficou incrivelmente bom; bem natural, exatamente os bastidores de um ensaio teatral.
Na verdade, Eduardo Coutinho fez uma proposta ao Grupo de ensaiar uma peça que nunca seria montada, seria apenas para realizar esse trabalho de documentário em cima de uma encenação pelo objetivo de mostrar essa linguagem investigativa entre a arte e a realidade à telona. Uma boa idéia, não? Adorei!
Adorei muito mais a escolha do texto de Tchekhov, não podia ser melhor, pois tem tudo a ver com o propósito do diretor de realizar. O sonho de consumo de uma família decadente é voltar para Moscou tentando realizá-lo a qualquer custo, mesmo sabendo que é um sonho quase impossível, uma utopia. Não é um simples documentário. De fato, não documenta como se monta uma peça teatral, as linguagens se fundem, as falas dos atores se misturam constantemente, às vezes não se sabe quem deveria falar o quê, quando e por quê? Fotos e fatos para trazer à tona lembranças pessoais.
Para quem gosta de originalidade, não deve deixar de apreciar esta obra de arte. Mesclar teatro ensaios, cinema, real, imaginário e finalmente Tchekhov, apesar de parecer que documentário é simples e fácil de se fazer, ledo engano, uma vacina nova, não deixe de tomar. Só pela idéia, TUDO já me fascinou, e o resultado me surpreendeu. É um filme sedutor.
Karenina Rostov
MOSCOU By Eduardo Coutinho

A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo. 1985)

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Um filme realmente “estranho”… Mas no melhor sentido que possa se atribuir à essa palavra. Ao mesmo tempo que é de uma poesia e beleza indescritíveis, tem um peso em alguns momentos insuportáveis. O filme é pessimista… E uma grande alegoria à sujeira humana por um conto de fadas.

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Aqui, o mestre Woody Allen nos transporta à vida de Cecília (Mia Farrow) uma moça com um emprego de merda, um marido de merda, vivendo como pode num mundo de merda (em plena Grande Depressão) que tem como única diversão, ir todas as noites ao cinema assistir ao filme “A Rosa Púrpura do Cairo“, estrelado por Gil Sheperd (Jeff Daniels), que vive Tom Baxter, o homem dos seus sonhos.

Então, num belo dia após várias visitas ao cinema, Baxter, encantado pelos olhos de Cecilia, resolve (para espanto de todos) sair da tela do cinema e fugir com sua nova amada para viver o que há de melhor no mundo real. À partir daí, a lógica deixa o roteiro.

Damos bastante risada com os inconvenientes da ‘fuga’ de Baxter, como o resto do elenco do filme desesperado sem poder dar continuidade ao filme, os demais Baxter’s querendo sair das telas em salas de exibição pelo resto do país, entre outras coisas. Mas isso é o de menos… Aqui, o foco está no choque entre a inocência e na realidade. A fuga de um personagem fictício para o mundo real, este achando que ‘aqui’ é onde se encontra a felicidade, onde tudo é belo e maravilhoso… E sendo guiado por alguém que justamente queria estar ‘do outro lado’, longe dessa realidade pesada, crua.

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Acompanhamos as aventuras do casal e as descobertas de Baxter sobre o nosso mundo. Mas o que mais encanta é como ele não se deixa corromper. Na cena do restaurante, ele tenta pagar um jantar caríssimo com dinheiro falso. Quando vê que não consegue, que seu ‘dinheiro cenográfico’ só vale em cena, eles fogem.

Em tese, ele deveria ficar ciente disso… Mas novamente, algumas cenas após, lá está ele dando o mesmo dinheiro a um mendigo, como se não lembrasse que de nada adiantaria. Essa persistência dele em querer manter-se ‘puro’ (mesmo que sem saber disso) que vai contrastar mais à frente, quando Sheperd (Jeff Daniels interpretando o ator que vive Baxter nas telas) conhece Cecília e ela se vê forçada à uma escolha. Sobre Sheperd… Ele é igual a Baxter… Fisicamente… E só!!!

Os diálogos entre ele e Cecília revelam que ele nada mais é que uma pessoa normal, um ator com certas ambições profissionais, que tem medo e receios, que conhece a vida e sabe o quão as coisas podem ser difíceis de verdade, ou seja, o total oposto de seu personagem. E isso, de certo modo, encanta Cecília. Ele não tem a magia do outro, mas era alguém real, que parecia com ela. Mas não há tempo para nada… Há o reencontro com Baxter e ele, num dos momentos mais mágicos e belos do filme, vai com ela para dentro do filme, onde pela primeira vez na vida, Cecília teve uma experiência digna dos maiores ídolos do cinema.

À volta, eis o ponto mais cruel do filme: Cecilia se encontra frente à uma escolha entre seus dois novos amores, entre a mágica e fantasia com os quais tanto sonhou e a segurança de uma realidade difícil, mas ainda assim real. E aqui, Allen se mostra sádico. A escolha seria fácil, em tese, afinal qual de nós pensaria duas vezes antes de cair de cabeça num mundo perfeito onde tudo é puro glamour? Mas ali estavam os pequenos detalhes entre os dois que aos poucos nos foram jogados na trama.

Na luta com Monk (Dany Aiello), marido de Cecilia, Tom não se machucou, pois por ser fictício, ele não sangrava, sentia dor ou “despenteava. Ele era virgem, nunca havia “feito amor”, pois nesses momentos, “a tela escurecia e a cena cortava”, o fade os consumia. Ele era impossibilitado de sentir qualquer prazer além dos que estavam no roteiro. Eram limitações com as quais Cecilia haveria de lidar.

Do outro lado, Sheperd, como dito antes, real, e por isso tão capaz quanto. Cecilia pensa e escolhe ir com ‘o real’… Mas pensa pouco! Por mais difícil que pudesse parecer essa escolha (e realmente era), ela não pensa muito. E, numa das cenas mais tocantes e pesadas do filme (e que me levou às lágrimas) ela profere a fala que resume o que Woody Allen quis dizer aqui:

– No seu mundo as coisas sempre acabam bem. Sou uma pessoa de verdade… Não importa o quanto eu me sinta tentada, devo escolher o mundo real.

A sua vida difícil num mundo de merda a havia ensinado que não tinha como melhorar… Ela se sentia condicionada àquele sofrimento e duvidava de tudo que não fosse a dor. A esperança era duvidosa. Tom volta ao seu ‘mundo’ e Cecilia se prepara para fugir com Sheperd para Hollywood, onde poderia ter o melhor de dois mundos, da fantasia do cinema e da segurança da realidade. Mas eis que Sheperd não está esperando por ela. Após terminada sua missão de fazer com que seu personagem retornasse ao filme, partiu no primeiro avião de volta ao ‘seu mundo’.

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Aqui, a crueldade desse conto de fadas… Cecilia abandonara sua casa em busca de um novo romance que não a esperou. Estava sozinha e completamente perdida. A única coisa que lhe restava era dinheiro suficiente para uma entrada no cinema… O filme não era o mesmo, um novo havia substituído o ‘problemático’, dessa vez um musical com Fred Astaire. Cecilia senta e começa a olhar pasma para o casal de protagonistas dançando… À medida que a cena se desenrola, vemos Sheperd no avião, com um olhar perdido e uma expressão de tristeza. O foco volta ao olhar admirado de Cecilia e os créditos sobem.

O filme nos leva a crer que, por mais que busquemos um refúgio em uma fantasia, sempre estamos presos à essa realidade assombrosa. Devemos buscar um equilíbrio que Cecilia não tinha. As sucessivas idas ao cinema para ver o mesmo filme demonstravam seu desespero em se agarrar à alguma coisa boa, pois esta sabia que ao término da exibição, ela voltaria a ser uma fraca submissa e que, justamente por isso, havia perdido a grande oportunidade de sua vida.

Num lance de gênio, Allen nos deixa a escolha de seus personagens. Ou alguém pode dizer com certeza se a expressão de tristeza no olhar de Sheperd era de dor por ter perdido um grande amor que acabar de surgir ou por simples remorso por ter usado da pureza de Cecilia? E o olhar admirado dela nos momentos finais do filme… Seria uma expressão de tristeza, de desgosto pela oportunidade perdida ou um novo encantamento que ali surgira com o novo ‘astro’ em cartaz? Isso cabe a nós decidir… Assim como o equilíbrio entre nossos sonhos e nossas possibilidades.

Realmente, é um final carregado de pessimismo e que, soaria um tanto quanto incoerente perante a mágica e beleza de toda a história. Mas não seria esse o castigo de Cecilia por não se arriscar? Tudo bem, o mundo pode parecer uma merda (e às vezes eu concordo que pareça – e seja), mas será que isso não é culpa nossa? Temos, sim, todo o direito de sonhar, assim como Cecilia sonhou. Mas será que, entre tantos direitos, devemos levar mesmo até os extremos o de sermos covardes como ela foi? Ou será que aquela covardia é algo ao qual estamos condicionados, algo do qual não se pode fugir e que nem deve ser chamado de covardia propriamente dita, apenas uma reação natural ao nosso mundo.

Isso (e me perdoem a expressão clichê que virá a seguir) é algo que somente cada um de nós pode dizer, afinal temos essa liberdade. O próprio Allen deixou isso claro, fez esse ‘balanço’ no roteiro, equilibrando a fala citada há pouco, extremamente pessimista, com um desfecho belíssimo e com um toque de esperança (e que também sempre me leva às lágrimas à cada vez que revejo – e há vezes que coloco o DVD somente para ver esse trechinho):

-Adorei cada minuto que passei com você e nunca vou esquecer daquela noite que passamos na cidade.
– Adeus!

E Baxter volta à tela… Cecilia sai com Sheperd rumo à sua escolha (que, como já sabemos, foi desastrosa), o resto do elenco vai à “festa no Copacabana”…
E Tom suspira.. E sai sozinho.

Por: Luiz Carlos Freitas.

A Rosa Púrpura do Cairo. (The Purple Rose of Cairo). 1985. EUA. Direção e Roteiro: Woody Allen. Elenco: Mia Farrow (Cecilia), Jeff Daniels (Tom Baxter / Gil Sheperd), Danny Aiello (Monk), Irving Metzman (Administrador do cinema), Stephanie Farrow (Irmã da Cecilia), Edward Herrmann (Henry), John Wood (Jason), Deborah Rush (Rita), Van Johnson (Larry), Zoe Caldwell (Condessa), Eugene J. Anthony (Arturo), Karen Akers (Kitty Haynes), Annie Joe Edwards (Delilah), Milo O’Shea (Padre Donnelly), Camille Saviola (Olga), Juliana Donald (Usherette), Dianne West (Emma). Gênero: Comédia, Família, Romance. Duração: 81 minutos.

Pinta-me da Cor do Açafrão (Rang De Basanti. 2006)

Às vezes uma pessoa pode ser empurrada tão longe que alcança um ponto além do medo, um lugar onde encontra uma estranha paz, onde se é livre para fazer a coisa certa, porque isso pode ser a coisa mais difícil de se fazer.

Uma jovem inglesa, Sue (Alice Patten), se encanta com um Diário de seu avó, Mr. McKinley (Steven Mackintosh)… Ele era um militar a serviço da Coroa Britânica na Índia; início do século XX. Em seu relato está a história de um grupo de revolucionários cuja têmpera ele nunca tinha visto antes. Eles lutaram com hombridade pela libertação da Índia. …Ela então quer fazer um filme com essa história, mas tem seu projeto negado com a desculpa que eles são heróis anônimos para o mundo. Logo não teriam retorno em bilheteria. Que eles não foram um Ghandi.

Decidida, parte assim mesmo para a Índia. Com a cara e a coragem. Por lá chegando, ganha o apoio e incentivo da jovem Sonia (Soha Ali Khan). Que já sabia que o projeto fora vetado. A produtora de Londres mesmo dispensara os seus serviços. Ela acomoda Sue na Universidade de Nova Dheli. Depois a leva para conhecer seus amigos: DJ (Aamir Khan), Sukh (Sharman Joshi)i, Karan (Siddharth) e Aslam (Kunal Kapoor). Sue após vários testes frustrantes com candidatos aos papéis principais, vê nesses quatro a encarnação dos heróis que seu avó, apesar de tudo, os admirou:

Sempre acreditei que haviam dois tipos de homens neste mundo. Os que vão ao encontro da morte gritando. E os que vão a seu encontro em silêncio. Mas encontrei um terceiro tipo. Os que caminham a longos passos, de forma decidida, com os olhos brilhantes e sem vacilar nunca.

A princípio, os quatro não entram no clima dos personagens. Por achar utópicos demais. O Campus, já fazem deles alguém admirados. Principalmente o DJ. Esse faz muito sucesso com as jovens. Acontece que o tempo ali dentro já está terminando. Eles terão que enfrentar o mundo fora daquelas cercanias, e no campo profissional. Aslam vem de família muçulmana, mas para os outros não vêem o menor problema.

Eles começam os ensaios. Mas faltava ainda o quinto herói. Quando esse, Laxman (Atul Kulkami), se apresenta a Sue, minhas lágrimas desceram. A cena arrepia! Uma outra com ele e um político próxima dessa, é chocante! Nos faz um convite a refletir com as campanhas políticas em todo o mundo.

O título do filme nos é mostrado mais adiante no filme. Onde o grupo participa de uma festividade. É contado em forma de canção. Um trechinho onde se ouve o ‘Rang De Basanti‘:

Pegue alguma terra de meu país, o perfume deste ar… Some o alento de meu ser, a palpitação de meu coração… E o ardor que corre por meu sangue. Pegue tudo isto e misture. Então olhe a cor que aparece…

Trocando em miúdos, eu diria que é vestir de fato as cores do país. Onde o engajamento está acima de credos, de partidos políticos, de ter ou não nascido nessas terras. É por toda a coletividade. A Índia é rica em cores… Em temperos… E o açafrão da Índia traz esse amarelo forte em sua raiz. É um condimento para pratos doces e salgados. Toda a história contada pelo Diário do avô, é tingida nesse tom amarelo.

Voltando… Tudo parecia ter entrado nos trilhos… Mas Laxman se revolta por Aslam está defendendo as cores da pátria. Brigam feio. O que leva a Sue desistir do filme. Pois é, nem tendo uma inglesinha querendo tornar público a história daqueles cinco heróis: Azad, Bhagat, Khan, Rajguru e Bismil. Nem assim, entre eles, ainda perdura a intolerância ao credo, ou a ascendência de outra pessoa. Mas DJ, com seu espírito brincalhão, consegue que ela, eles, voltem às filmagens. O avô de Sue também entra em choque, mas esse com a sua própria religião. Por fechar os olhos diante das injustiças.

Com o filme pronto… Uma tragédia abate sobre eles. E por ela vem a público uma corrupção no alto escalão do governo. Logo com o Ministro da Defesa. Mas em vez de puni-lo… Usam a principal vítima dessa tragédia, alguém que fora um herói… Fazem dele um irresponsável. E durante uma manifestação pacifista, num enterro simbólico em frente ao Monumento dos Heróis… O governo responde com violência. Com isso, os jovens, que até então só tomavam conhecimento da corrupção em breves momentos diante da tv, resolvem agir. Vestem as cores da pátria:

Estes políticos corruptos são um reflexo de nossa sociedade. Nós os escolhemos. Mudemos a nós mesmos para que se produza uma mudança.

A Índia nesse filme é por demais sedutora. As paisagens, tanto diurna, como noturna é de nos deixar em êxtase! De um colorido deslumbrante! De querer viajar para lá. A trilha sonora é outro ponto positivo. A atuação dos atores também. Enfim, um filmaço! De ver com brilhos nos olhos! Onde em certas cenas, minhas lágrimas jorraram. E eu deixo um convite a Todos: ASSISTAM!

Por: Valéria Miguez (LELLA)

Pinta-me da Cor do Açafrão (Rang De Basanti). 2006. Índia. Direção e Roteiro: Rakesh Omprakash Mehra. Elenco: Aamir Khan, Siddharth, Sharman Joshi, Kunal Kapoor, Atul Kulkarni, Alice Patten, Soha Ali Khan, Steven Mackintosh, R. Madhavan, Waheeda Rehman, Kiron Kher, Om Puri, Lekh Tandon, Cyrus Sahukar. Gênero: Comédia, Drama, Histórico, Romance. Duração: 157 minutos.