A Fita Branca e a Repressão

Por: Affonso Romano de Sant’Anna.
Estava eu dizendo a uma jovem criada na permissividade atual, que seria interessante ela ir assistir A FITA BRANCA para ter uma idéia de como era o mundo ontem. Para quem nasceu numa cultura onde tudo é permitido, ou melhor, todas as transgressões são estimuladas,  esse filme de Michael Hanecke deve soar como algo de outro planeta. Ele é o mesmo diretor de  ‘A professora de piano’ e ‘Cachê‘ – este com a Juliete Binoche.

Ali está uma sociedade onde cada coisa tem o seu lugar pré-determinado. E cruel. O sacerdote controla a moral, o barão controla a economia, o médico (pouco ético) opera, os trabalhadores, as esposas  e os filhos obedecem. Mulheres, filhos e trabalhadores são as grandes vítimas. E sob essa estrutura rígida, a maldade, a perfídia, a brutalidade, a sexualidade, a violência e a morte laboram.

Há uma estética nova nas fotos e na narração. Uma tensão incômoda atravessa toda a história.É uma parábola da crueldade humana? No entanto dois núcleos nos dizem que o ser humano pode ser admirável: as cenas do filho menor conversando sobre pássaros com o áspero pai e sacerdote, e o amor entre o professor e a adolescente.

Que sofrimento inútil carregamos nos desencontros dentro da própria tribo!

A Fita Branca – Uma história alemã para crianças

(Das weiße Band, Áustria, Alemanha, França e Itália, 2009)

"Não consigo dormir!"

"Não consigo dormir!"

Um grupo de crianças num lugarejo às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Elas vão à escola, andam juntas observando os acontecimentos, sendo observadas por nós.

O narrador é um professor, que nos conta em ordem cronológica o que aconteceu: atentados. Primeiro o médico, depois a senhora, depois uma criança e outra. Há uma escalada de violência. Maníacos agindo.

O médico é severo. O pastor é severo. O barão é severo. Os detentores do poder e bastiões daquela sociedade… Severa. Tudo em nome de uma vida “correta”.  A Fita Branca é o símbolo desta imaculação, desta retidão, desta disciplina.

Vemos o filme tensos, tentando compreender o que está acontecendo. Seguimos o raciocínio do professor, figura simpática e apaixonada, uma pessoa conselheira e ponderada.

"Prazer em conhecê-lo!"

Momento! Eis que começam as interessantes induções. Somos induzidos! Tiramos conclusões, achamos culpados, esclarecemos o mistério. O final aberto nem é tão irritante, porque já sabemos tudo. O que nos irrita levemente talvez seja o fato de não sabermos se e como  os culpados foram punidos. Como somos vingativos, não? Ok, não sejamos tão severos: Como nosso senso de justiça clama por um desfecho adequado ao nosso código!

Muita pressão...

Mas. Provas concretas? Num primeiro momento, eu acredito em tudo que me foi “mostrado”. Depois, pensando, paro e vejo toda uma outra perspectiva. O que o Nazismo tem a ver com isso? O que uma sociedade praticamente feudal e totalmente patriarcal tem a ver com isso? O que a opressão e a falta de afeto real tem a ver com tudo isso? O que a tendência a reproduzir padrões tem a ver com tudo isso?

Haneke é um provocador. Quem assistiu Caché sabe. Ele questiona as origens da violência e nossa, sim nossa!, participação nela. O espectador decide o que aconteceu. Somos induzidos, quase compelidos a isso.

Mestre da manipulação da opinião, um Machado de Assis do cinema!

Ao ver o filme, tente descobrir o(s) culpado(s), depois, tente encontrar as provas concretas de sua culpa. Aí conversamos se tudo isso tem a ver com o passado somente.

"Voltem para a cama, a situação já está sob controle."

Excelente filme e excelentes discussões!

O diretor Micheal Haneke se explica, em entrevista:  http://www.goethe.de/ins/br/sap/kue/flm/pt5243151.htm

Violência Gratuita (Funny Games U.S.)

funny-gamesDois mais dois são quatro. Cinco mil anos para se entender isso. Sempre haverá violência gratuita. Em nenhum tempo se entenderá isso.

São tantos os tipos e modos de violência, em todos os tempos e todos os lugares. A violência verbal é só uma delas, e é tão agressiva quanto a física: ambos ferem e machucam como o machado. Mas o objetivo aqui não é listá-los.

Esta semana acompanhou-se pelos meios de comunicação mais alguns casos de VIOLÊNCIA GRATUITA que chamou a atenção. Uma delas tendo como protagonista uma brasileira grávida fora de seu país agredida por três rapazes (a versão desse fato ainda não está esclarecida; independente do que aconteceu realmente não tira o mérito de um ato de extrema violência); a outra aconteceu com uma menina de cinco anos, morta porque chorou ao ver seu pai sendo assassinado. Parece que ninguém mais se choca quando presencia algo do gênero; age-se como imunes e vacinados, não demonstrando reação de revolta, raiva ou qualquer sentimento de pena ou culpa. Talvez pela própria impotência: fazer o quê? Isso é fato. É real. E cada um com o seu individualismo.

E sempre se falou que a arte imita a vida. Ou a vida é que imita a arte? Há uma inversão de valores. A vida já não vale nada. A arte é ficcional. A arte baseia-se no real. O conceito de estética cinematográfica como sinônimo de entretenimento há muito já não existe. As novas mudanças são facilmente reconhecidas no cinema inovador do austríaco Michael Haneke. Ele, em seu filme Funny Games NÃO deixa o expectador ficar à vontade. Certamente se você ainda não assistiu ficará perturbado e chocado com a trama. A história é banal, só que envolve o expectador de tal maneira que o torna praticamente conivente e cúmplice das as situações de violência.

Só de se pegar o filme, já sabendo de antemão a sua sinopse, um thriller provocante e brutal de uma família em férias que recebe a inesperada visita de dois jovens profundamente perturbados, torna-se responsável por aquilo que se assiste. A partir daí as férias de sonhos dessa família se transforma em pesadelo quando são sujeitados a inimagináveis terrores e provações para continuarem vivos. A violência é sutil, ela é apenas sugerida. Paul e Peter, personagens impecavelmente vestidos de branco, a cor que simboliza pureza, iniciam seus jogos de sadismo e horror com a família (homem, mulher, o filho e o cão) sempre intitulados com frases de duplo sentido, engraçadas infantis, chegando a ser um JOGO ENGRAÇADO, brincadeira de criança.

O fato inusitado nesta história que Haneke presenteia seu público começa quando Peter, o líder da dupla delinqüente, fala com a câmera com a certeza da presença do expectador, não pura e simplesmente como um voyeur, mas com a certeza de que ELE faz parte desse jogo e é conivente, não estando ao lado da família, mas apoiando toda a maldade que ali se instalou e impera. Às vezes um deles dá umas piscadas como que autorizando e confirmando com o espectador a aceitar essa condição, lembrando-o de vez em quando que está vendo um filme e, pior do que isso, colocando-o na inusitada posição de cúmplice passivo do ato de violência.

Bem ou mal, quem o assiste acaba fazendo parte da narrativa. É um filme não confortável porque quase que obriga a fazer parte da história e tomar partido dela. Parece que o real e o imaginário fundem-se. A tal linha tênue que separava ambos não existe aqui.

É uma receita velha para ingredientes novos. O cinema com uma nova roupagem, novos elementos instigantes que nos prendem a atenção. Apesar de o título VIOLÊNCIA GRATUITA (a tradução faz sentido), porém, ela quase não é mostrada. E é isso que torna o filme mais genial e inteligente do que ele deveria ser. Tudo é sugerido. Quando vai acontecer algo de terrível e violento a câmera não mostra, se ouve apenas sons dizendo que algo ruim aconteceu. E o resto fica por conta dos devaneios de quem assiste. Tem que refletir. Ou melhor, isso não é necessário.
Uma vez usado o tempo ele não volta mais. Daqui a pouco o agora será passado. Em Violência Gratuita, pode-se retroceder. Pode se alterar a história, ressuscitar os mortos; pode se pegar o controle remoto e fazer as mudanças necessárias. Na arte tudo é possível. Basta querer. Um filme ousado. Gosto disso.

Eis alguns bons motivos para se conferir a mais essa jogada do mestre Haneke. Uma obra prima.

Por: Por: Karenina Rostov.   Blog: Letras Revisitadas.

Violência Gratuita (Funny Games U.S.). 2007. EUA. Direção e Roteiro: Michael Haneke. Elenco: Naomi Watts (Ann), Tim Roth (George), Michael Pitt (Paul), Brady Corbet (Peter), Boyd Gaines, Siobhan Fallon, Devon Gearhart. Gênero: Crime, Drama, Terror, Thriller. Duração: 107 minutos.