“Todo o poder vem de Deus.”
Um sistema político, ainda que não teocrático, mas imbuído de ideais divinos, fará qualquer coisa, justificando suas ações em nome de uma divindade. E o homem comum, inferior a tudo isso, sofrerá as consequências de tais ações.
Em “Leviatã”, Kolya é o homem comum, que vive em uma pequena cidade litorânea russa, com filho adolescente e a segunda esposa, e que terá que enfrentar o poder estabelecido. Sua pequena propriedade é alvo da especulação imobiliária, promovida pelo prefeito beberrão, Vadim. Esse pequeno Yeltsin local é apenas um dos componentes de uma Rússia corrupta que emergiu do submundo à luz, com a queda do regime soviético. Além do prefeito, a polícia e o poder judiciário oprimem esse cidadão comum, que tenta lutar honestamente para ver seus direitos reconhecidos. Para tanto, Kolya conta com a ajuda de um velho amigo, Dmitri, agora advogado. Ao tentar jogar com as mesmas armas do prefeito, porém, eles se veem diante de uma força maior: uma vez que aquela cidadezinha litorânea, na visão do diretor Andrey Zvyagintsev, é construída como uma miniatura da sociedade russa, o governo é mostrado como apoiado por uma igreja também corrupta, onde poder espiritual e político atuam juntos para a perpetuação de todo esse grande sistema.
Aqui, de uma espécie de drama de denúncia política, o filme revela uma nova faceta, ganhando ares de tragédia. Uma vez que “todo o poder vem de Deus”, nas palavras do bispo conselheiro de Vadim, inicia-se todo um conjunto de “circunstâncias”, criando um turbilhão de desgraças sobre Kolya, esse Jó contemporâneo incapaz de lutar contra o monstro que o engole, monstro que é metade secular, metade temporal. É o Leviatã hobbesiano aliado ao Leviatã bíblico, uma das grandes construções de um roteiro formidável, merecidamente premiado em Cannes, e que dá o norteamento trágico ao filme.
A escolha do diretor e co-roteirista Zvyagintsev pelo tom fatalista dá-se desde os planos abertos e escurecidos da natureza do Mar de Barents no início, emoldurados pela abertura solene da ópera “Akhenaton” de Philip Glass – o faraó que quis mudar o sistema de crenças de sua cultura, morrendo vítima das “circunstâncias”. O peso do filme é quebrado por algumas personagens e situações, como a quase caricata esposa do policial e a sequência do tiro ao alvo, quase um sketch de sátira política, para, logo em seguida, o destino se abater implacavelmente sobre os personagens. Importante ressaltar que, como tragédia que é, os personagens não apresentam grandes complexidades ou ambivalências, quase que encarnando estereótipos, ou mesmo arquétipos. São meros joguetes do destino que irá se desenrolar naquele palco. Kolya é um ingênuo, que teima inocentemente em não entender a trama que se abateu sobre sua cabeça. Alcoólatra como o protagonista, Vadim é, a seu modo, uma marionete a serviço de forças econômicas e políticas superiores. Dmitri, idealista e crente dos fatos e não da religião, acredita ser capaz de derrubar o sistema preestabelecido, revelando também sua parcela de ingenuidade. Lilya é a personagem mais típica da tragédia, a esposa que nunca sorri, carregando todas as culpas do mundo pelo que ocorreu ao marido. Diante dessa força inexorável, pode-se pensar que, se “Leviatã” fosse filmado pelos irmãos Coen, ele se chamaria “Um Homem Sério”.
Difícil compreender de uma só tacada as sutilezas do diretor. A figura da baleia na praia como metáfora de um Estado morto, mas ainda presente, pronto a devorar esse Jonas? As cenas que retratam um Kolya bêbado observando a abóbada da igreja em ruínas, e o filho do prefeito olhando o teto da igreja, contrastam a velha e a nova Rússia. O confronto entre o discurso do padre a Kolya e a fala final do bispo durante a missa revela um abismo entre a sinceridade/ingenuidade do representante do baixo clero, e as palavras hipócritas daquele que caminha pelos grandes círculos do poder. A busca pela verdade, tão propalada, nada mais é do que uma falácia.
Sátira, drama, tragédia, “Leviatã” possui referências iniciais no pessimismo típico da literatura russa, para então aproximar-se de um ideal grego, construindo uma hábil denúncia de um país tomado pela corrupção em todos os níveis, de tal modo que tal câncer parece ter entrado em metástase. Ao fechar seu filme com as mesmas paisagens tomadas pelas ondas furiosas que o iniciaram, Andrey Zvyagintsev mostra que não vê saída para o que ocorre em seu país. Melhor para nós, que ganhamos essa obra feroz e magistral.