Por: Affonso Romano de Sant’Anna.
Não tem muita gente vendo esse filme de Atom Egoyam. É pena, porque é um bom filme e, em certas cenas, além de mostrar a insanável estupidez humana, nos dá lições não só da história recente, mas de afetos e ternura humana. Estou falando de “Ararat”, dirigido por um armênio, com personagens armênios, sobre episódios da história armênia. Tem até um armênio ultraconhecido – Charles Aznavour, que não canta, mas conta também a história.
-Quantos filme armênios já vimos?
-Menos que iranianos, sulcoreanos e búlgaros.
Esse começa até com uma coisa que aos brasileiros soa familiar, pois os personagens começaram a contar uma estória que é exatamente a estória de “O coração materno” do nosso Vicente Celestino: o namorado que arranca o coração da mãe para doá-lo à sua amada e assim provar sua paixão. A narrativa é tão semelhante, inclusive com aquela cena de o coração da mãe saltando de suas mãos e falando-lhe de seu amor eterno. Mas não é isto o que fundamental no filme.
O filme tem várias histórias dentro dele e uma delas é a história de um filme sobre o genocídio ocorrido em 1915 quando os turcos mataram naquele conturbado país, cerca de um milhão de homens, mulheres e crianças. Isto foi ontem, e nos faz entender o Afeganistão, o Iraque, as guerras em Israel e Palestina, o terror nazista, stalinista, maoista, o genocídio no Camboja e confirmar que o século XX foi o mais violento e dizimador de quantos existiram, desde a extinção dos dinossauros por misteriosos asteróides.
No meio do filme, um dos personagens diz que, para incentivar a dizimação dos judeus, Hitler afirmava que ninguém ligaria muito para aquilo, iam acabar esquecendo, porque a humanidade tem memória fraca. Com isto, ironizava: -Quem se lembra do massacre dos armênios? Já no final do filme aparece um texto dizendo que os turcos continuam afirmando que esse genocídio jamais existiu. Daí a necessidade de os armênios contarem e recontarem sua história para que ela não se apague neles e nos outros.
Os humanos têm necessidade de guardar, criar, recriar e até mesmo de inventar sua própria história. É isto, entre outras coisas que me sensibiliza nesse filme. Nesse ou no esplêndido “Narradores de Javé” dessa competente Eliane Caffé ou em “A encantadora de baleias” daquela diretora neozelandeza. Em “Narradores de Javé”, toda uma comunidade recorre à memória e à narração para salvar-se do naufrágio no tempo, quando a represa expandisse suas águas sobre suas casas. Cada um se sente protagonista e dá a sua versão pessoal e subjetiva dos acontecimentos. Em “A encantadora de baleias”, é a magia de uma lenda beira-mar, como num conto de fadas, mobilizando a uma comunidade através da menina que, à revelia do machismo imperante, assume seus poderes de líder dialogando magicamente com a baleia, enquanto tótem da tribo, recuperando surpreedentemente o passado e modernizando a tradição.
Os três filmes são muito diferentes, e, no entanto, têm esse traço comum: a narrativa reagrupando a comunidade e dando sentido às vidas diante do dilúvio do esquecimento. O ser humano carece de embarcar na narratividade e ancorar sua memória num possível Ararat. E já que Noé atracou sua barca naquele monte, os armênios se consideram o berço da nova cultura humana depois do dilúvio. Ararat significa Grande Mãe e foi ali que, segundo a Bíblia, Deus estabeleceu a nova aliança com suas criaturas, ali foi onde Noé ergueu um altar e onde tudo recomeçou.
Já se falou que o homem é um animal simbólico, outros dizem que é um ser lúdico, outros o definem como “homo faber” ou “ homo economicus”, enquanto outros afirmam que é um ser que pensa. Mas pode-se dizer também que o que nos caracteriza universalmente é que somos seres que narram sua própria história. Assim como na natureza há os roedores e os herbívoros os humanos pertencem à espécie dos narradores. Narram oralmente, narram por escrito, narram pelo teatro, narram pelo cinema, narram por cores e volumes, narram pela dança, narram conversando na esquina, narram pelos jornais, narram fofocando por telefone e até por email não fazem senão narrar.
Pois nesse filme uma das personagens é uma professora/ pesquisadora de arte que se dedica a fazer conferências sobre a vida e obra de Aschille Gorki-pintor armênio, que ainda menino teria assistido ao massacre dos seus, antes de conseguir com uns poucos sobreviventes chegar aos Estados Unidos.
Gorki viria a fazer parte de um famoso grupo de pintores da Escola de Nova York, da qual participavam Pollock, Rothko, Motherwell, De Kooning, Reinhardt e outros. Herói trágico, como Pollock e Rothko, ele também se mataria. Não pôde carregar sua própria narrativa. Olhava a velha fotografia em que estava ao lado de sua mãe antes da fuga e do massacre mas não conseguia libertar-se dela. Tentava pintá-la, reelaborá-la através de seus quadros, mas não superava o trauma. Havia algo inacabado nele e nas mãos da mãe que não conseguia terminar de pintar. É que há certas vidas de tal forma envenenadas em sua origem que só na inevitável e ansiada morte encontram o alívio para sua narrativa.
Nem sempre se pode suportar a própria história.
Mas, nesse filme “Ararat”- que remete simbolicamente para o monte onde a mítica barca de Noé teria ancorado, outros personagens procuram escapar ao dilúvio da história e da desmemória. O filho da professora de história da arte, por exemplo, volta à Armênia para filmar sozinho cenas e lugares que poderiam eventualmetne ser utilizadas no filme que está sendo rodado. É a geração mais jovem querendo reachar suas origens e refazer o périplo de seus antepassados.
Narrar é preciso.
Narrar é sobreviver.
Narrar é ancorar-se.
Narrando o mundo se recria. A gente diz “ era uma vez” e abre-se uma possibilidade infinita.
Por: Affonso Romano de Sant’Anna. Em 3.04.2004-O Globo. http://www.affonsoromano.com.br/
Nota do Autor (Jan/2010): Esse texto estará no próximo livro: LER O MUNDO.
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