“As Horas” é um romance escrito em 1998 por Michael Cunningham e que lhe rendeu, no ano seguinte, o prêmio Pullitzer para a categoria ficção. Em 2002, sob direção de Stephen Daldry e atuações de Nicole Kidman, Julianne Moore, Meryl Streep nosapéis principais e outros grandes nomes como John C. Reilly e Ed Harris como coadjuvantes, “As Horas” se tornou um dos grandes clássicos do cinema e traz consigo uma profunda reflexão em torno da angústia heideggeriana. Diferente do que acontece com frequência na transposição do livro para o cinema, “As Horas” é uma película formidável, que merece todos os tipos de elogios de seus telespectadores, contando com atuações espetaculares dos atores e atrizes que compõe o time, que traz a essência do livro com toda a perfeição e fidelidade necessária para a realização de uma grande obra cinematográfica.
O livro conta um dia de três mulheres em períodos distintos, entrelaçadas por um elo em comum: o romance “Mrs. Dalloway”. Durante o decorrer deste dia, iremos observar os contrastes e as imensas semelhanças na vida destas três mulheres, que compartilham o principal objeto de estudo para a realização deste texto: a angústia. A primeira cena do filme, que funciona como prelúdio, é uma descrição dos últimos momentos da vida da escritora britânica Virginia Woolf (25/01/1882 – 28/03/1941 – interpretada por Nicole Kidman), e reconta a história de seu suícidio, o que de fato aconteceu, derivado das constantes crises depressivas e acontecimentos que agravam o seu estado existencial, como a destruição de sua residência em Londres , durante o bombardeio realizado pela Força Aérea alemã durante a 2º Guerra Mundial.
“Querido, Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer. Você me deu muitas possibilidades de ser feliz. Você esteve presente como nenhum outro. Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível. Não posso mais lutar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Enfim, o que quero dizer é que depositei em você toda minha felicidade. Você sempre foi paciente comigo e realmente bom. Eu queria dizer isto – todos sabem. Se alguém pudesse me salvar, este alguém seria você. Tudo se foi para mim mas o que ficará é a certeza da sua bondade. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais. Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos. V.”
A cena é retratada de forma magistral e exibe a nobre Virginia Wolf, escrevendo os bilhetes, abotoando os botões de seu roupão, fechando a porta de sua casa, caminhando por um bosque, colhendo pedras e colocando-as em seus bolsos e, finalmente, entrando num rio próximo a sua casa, paralelamente o seu marido entra em sua casa, encontra os dois bilhetes e os lê. Enquanto toda a cena se desenvolve, ouvimos a voz de Nicole Kidman dizendo os trechos do bilhete publicado acima. A cena é triste, porém muita bela e triunfante.
Em 1923, observamos o dia de Virginia Woolf enquanto ela começa a escrever o romance “Mrs. Dalloway”, e planeja contar toda a história de uma mulher em um único dia. Paralelamente temos uma constante e sofrível luta de Virginia contra a sua própria loucura.
Em 2001, Clarissa Vaughan (interpretada por Meryl Streep) organiza uma festa para comemorar o prêmio literário que seu grande amigo Richard (interpretado por Ed Harris) – ex-namorado, homossexual, aidético e prestes a morrer – ganha por reconhecimento a um livro de sua autoria. A vida de Clarissa só tem sentido ao vivenciar a vida de Richard – que trata a amiga sempre por “Mrs. Dalloway” – a qual observamos a sua enorme angústia ao se deparar com o estado terminal de seu amigo, assim como as constantes tentativas de lhe proporcionar ânimo e alegria, até como forma de combater a sua própria angústia.
É notável o movimento a qual se desenrola toda a trama, sendo a ligação e os paralelos entre as três protagonistas que fazem de “As Horas” umas das grandes películas de nosso tempo. De tal forma, o livro não deve ser diferente. Apresentada a trama, vamos aproximar “As Horas” com algumas partes da filosofia heideggeriana. Primeiro é preciso retomar que, sendo a filosofia de Martin Heidegger uma filosofia muita abstrata, fica difícil entrar em consenso quanto a alguns significados, sendo a intuição o principal método utilizado para a compreensão da obra de Heidegger. Uma vez que possamos dizer que a angústia ôntica é aquela que tem origem no intra-mundano e que a angústia ontológica não tem origem e é causa de si mesma, representado apenas a dor e aflição de um nada sem explicação, estamos aptos a iniciar a reflexão.
A escritora britânica Virginia Woolf é vítima de fortes crises depressivas, têm consecutivos quadros de histeria e, consciente de seu estado mental, enfrenta diversas batalhas com a sua própria loucura até o momento que se sente incapaz de vencer sua doença e acaba cometendo suicidio. É evidente a angústia de Virginia, que está sempre a esperar que algo aconteça, e a ansiedade presente em cada hora de seu dia, onde é difícil conciliar os pensamentos com a realidade. Embora tenha o constante apoio de seus familiares, Virginia sente que seu quadro é irreversível e para aliviar as dores de seus sentimentos, procura fugir o máximo possível de si e do mundo, como que para procurar algo sem saber exatamente o que.
Podemos nos basear analisando duas cenas onde a tentativa de fuga e a oscilação do pensamento: uma é quando Virginia decide ir à estação de trem de sua cidade e, após se encontrada por seu marido, pede para sair da região a qual habitam em troca de uma cidade mais movimentada. É a tentativa de Virginia para acreditar que o seu problema se encontra na vida a qual ela vive, e que a mesma não representa a sua própria vontade. Assim como Virginia, existe uma gama de pessoas que procurar exteriorizar os seus problemas e acaba procurando uma solução fora de si. São inúmeros os casos de pessoas que vivem angustiada e para acabar com este sentimento escolhem mudar de cidade, de carro, trocar o guarda-roupa, reformar uma casa, etc. No princípio, existe uma disposição para que as coisas melhorem, visto que a novidade faz que a nossa mente se distraia de forma mais acentuada, porém, conforme o passar do tempo, a novidade deixa de existir e você passa a se encontrar consigo mesmo, se reencontrando com a angústia e tendo a necessidade de se distrair novamente.
Neste caso, a origem é patológica, proveniente de uma doença como a depressão. Além disto Virginia está sempre a fugir de si mesma, tanto é que opta pelo suicídio para acabar com o seu sofrimento e o sofrimento de seus próximos, numa atitude de não aceitação. Esta não aceitação é que faz com que Virginia, mesmo atingindo a angústia ontológica em diversos momentos, procure uma explicação – até como princípio de distração – para sua própria angústia e acabe migrando para o estado de angústia ôntica, que é onde podemos nos arriscar a contextualizar os suicidas, que utilizam da morte como distração para por fim à angústia.
Laura Brown acorda sozinha em sua cama. Seu olhar é absorto. Fica claro que ela se sente uma estranha. A única coisa que parece lhe interessar é o romance “Mrs. Dalloway” que está em seu criado-mudo. Ao levantar observa que o seu marido já está de pé e que prepara o café-da-manhã para eles. Ele diz que não quer incomoda-la, afinal ela está grávida. Ele está alegre, alias é o seu aniversário. Laura finge para ele e para o seu pequeno filho uma sensação de felicidade que não existe. Ele se despede e vai trabalhar. Laura Brown acredita que ela deve fazer algo para comemorar o aniversário do bondoso marido e decide forçosamente a fazer um bolo. Mas é difícil. Laura não se sente à vontade, não se sente bem com a sua vida. Ela está angustiada e sua angústia não tem origem em nenhum acontecimento interior ou exterior. Esta á a angústia ontológica. Laura Brown passa a existir para Heidegger. Algo pede para ela se entregar a esta angústia, contudo ela hesita, não sabe o por que, da mesma forma que ela também não sabe porque se sente assim. Todos seus movimentos são incertos. Laura recebe a visita de uma antiga amiga e num momento acaba lhe beijando a boca, o que deixa o ambiente difícil e pesado, e faz com que sua amiga vá embora.
Nesta ultima cena podemos dizer que a amiga que Laura Brown procurava atender a necessidade de dar vida a esse apelo da vida causada por sua angústia ontológica, que pede insistentemente para fazer algo mas sem dizer o que é este algo, não obstante também podemos dizer que Laura Brown fez algo que sempre quis fazer, e estava no processo de humanização quando decidiu trocar sua vida inautêntica por uma vida autêntica, onde ela pudesse realmente fazer aquilo que seu ser sempre reclamou.
Posteriormente Laura Brown pega o bolo que estava preparando para o seu marido e o destrói. O fato dela preparar o bolo era algo que estava presente em uma vida que não era sua e neste processo de humanização não fazia sentido algum continuar com aquilo.
Ao continuar a leitura de “Mrs. Dalloway”, Laura Brown planeja o seu próprio fim, visto que ela não enxerga uma saída para se livrar de seu estado de sofrimento. Ela pega o seu filho Richie, leva para uma vizinha cuidar e se dirige à um hotel, onde retoma a leitura de seu livro. Durante todo o decorrer do dia de Laura Brown também é interessante analisar um personagem que também é vítima de uma angústia, embora seja ôntica, e sofre tanto quanto os demais personagens: é o pequeno Richie, que percebe o quanto a sua mãe sofre e sente a inutilidade em não poder fazer nada para alterar este quadro. Ele acompanha cada momento do dia de sua mãe e percebe o quanto ela é infeliz. Ele percebe inclusive o momento em que ela deseja se matar, o que é retratado com o seu desespero ao ser deixado na casa da vizinha enquanto a sua mãe se dirige ao hotel. Contudo a sua angústia tem origem no sofrimento de sua mãe. Richie vive uma vida inautêntica por isto.
Após terminar a leitura de “Mrs. Dalloway”, Laura Brown decide não mais se matar. Ela retorna a casa da vizinha para pegar Richie, prepara o bolo do marido e depois observamos a comemoração do aniversário em família. Porém o olhar de seu filho deixa claro que Laura Brown ainda continua num estado que o preocupa. É claro que, até então, podemos concluir que a leitura de “Mrs. Dalloway” no hotel teve um efeito decisivo na vida de Laura, embora só no final do filme iremos descobrir o porque, mas o que podemos dizer já é que o livro proporcionou que Laura se encontrasse com o seu Dasein e permanecesse a viver não mais em estado de dúvida, porém existisse em estado consciente e controlado. A partir daquela experiência ela tomou parte de sua vida e passou a controlar todos os acontecimentos posteriores. Ela passou a se conhecer. Clarissa Vaughan está animada. Seu melhor amigo, Richard, acaba de ganhar um prêmio em relação a um romance que escreveu. Ela organiza a festa que fará em homenagem à ele.
Alias, Clarissa é especialista em dar festas. Homossexual, observamos que Clarissa também se como simular a alegria e a felicidade, sempre na tentativa de quebrar a solidão, tanto a sua como a dos outros. Porém fica claro que ela também não se sente confortável com sua própria vida. Ao se encontrar com o deprimente Richard, em estado sofrível e prestes a morrer, Clarissa tenta animar o Richard com a sua própria festa, porém ele não vê motivos para euforia. Não é a festa que vai deixá-lo bem, não é a festa que irá amenizar a sua angústia ôntica, que tem origem na sua expectativa de morte e no percurso de sua má sucedida vida. Richard ironiza Clarissa dizendo algo como “Mrs. Dalloway dando festas para quebrar o silêncio”. Esta é uma tentativa de Richard de dizer para deixar o que está como está, que não vale a pena mascarar a verdade, para ela parar de ficar simulando a vida e ficar fugindo de si mesma. Richard sabe que irá morrer. Ele não gosta de si e não gosta das pessoas, com exceção de Clarissa.
Clarissa sofre ao ver o amigo sofrer, a sua angústia é ôntica e tem origem no sacarmo e na antivida de Richard. Ela afirma que só é feliz na presença do amigo. Clarissa vive uma vida inautêntica, vive uma vida que não é sua. Para Heidegger, ela não existe. Ela não atende o chamado de seu Dasein. Ela prefere espantar tudo com flores e festas. Ela prefere tapar os ouvidos ao invés de escutar o seu ser. Naquela tarde, numa das visitas de Clarissa para definir detalhes da festa, Richard resolve se suicidar ao se atirar pela janela de seu apartamento. Clarissa observa tudo e se sente inútil, pois ela sempre teve a certeza de que poderia fazer algo que deixasse o seu amigo feliz. Ela se sentia assim justamente porque não vivia a sua vida. Então surge a apoteose da obra: durante o funeral, todos os participantes ficam chocados ao saber da visita da mãe de Richard. Clarissa sabe que a mãe de Richard abandonou ele e a sua irmã, assim que ela nasceu, e nunca mais deu notícias. Esta era a maior mágoa de Richard.
Sua mãe não é nada mais nada menos do que Laura Brown e descobrimos que Richard é o pequeno Richie que viu de perto toda a angústia de sua mãe. Laura explica que havia algo dentro de si que lhe dizia que aquele não era o seu lugar e que lhe clamava por vida. Ela havia decidido se matar numa tarde em que ela se hospedou num hotel. Porém ela havia decidido que não faria isto naquele momento e planejou todo o seu futuro: assim que ela tivesse o bebê, iria abandonar toda aquela vida ilusória (inautêntica) e passaria a viver (existir) da forma que realmente gostaria. Ela prometeu a si mesma que não iria se arrepender e que não iria olhar para trás. Ela disse á todos que havia escolhido viver. Ela diz isto serena, confiante, e com o olhar mais leve do que a Laura que observamos antes.
Heidegger diz que a felicidade não é possível como um sentimento simulado quando você decide viver uma vida autêntica, aquela felicidade proveniente de um sentimento de distração e de apego, mas diz que surge um sentimento de libertação, de conhecimento e um certo orgulho que nos faça crescer de tal maneira que poderemos dizer qual é o mundo que não queremos viver. E é este sentimento que encontramos na fala de Laura Brown ao relatar a sua experiência. Ninguém está mais apto a lhe julgar, e sentimos uma certa comoção geral.
A lição que fica desta cena é que não há vida ao se agradar somente os outros. Laura poderia viver uma vida dedicada aos filhos e ao seu marido, mas não é o que ela queria, então por que deveria ser assim? Por qual motivo ela deveria deixar de fazer aquilo que o seu ser ansiava? Quando passamos a viver uma vida que não é nossa apenas para agradar os outros, quando é que alguém passará a viver a sua própria vida de forma autêntica? Quando é que a vida passará a existir? Quando é que viveremos? Ao término do filme, observamos novamente a cena em que Virginia Woolf caminha adentro ao rio e comete o suícidio que entrou para a história como o fim da escritora. O dia termina. É o fim de “As Horas”. É por todos os argumentos citados neste texto que vale destacar “As Horas” como uma oportunidade de releitura da obra de Martin Heidegger, justamente por encontrarmos ingredientes que fazem parte da filosofia do último grande filósofo de nosso tempo. E que esta obra nos sirva para refletirmos durante todos os momentos de nossa vida.
Por: Evandro Venancio. Blog: EvAnDrO vEnAnCiO.
Link IMDB: http://www.imdb.com/title/tt0274558/
Trailer: http://www.youtube.com/watch?v=he8cR7skklA
As Horas (The Hours). 2002. EUA. Direção: Stephen Daldry. Roteiro: David Hare. Nicole Kidman, Juliane Moore, Meryil Streep, Stephen Dillane, Miranda Richardson, George Loftus, Charley Ramm, Sophie Wyburd, Lyndsey Marshal, Linda Bassett, Christian Coulson, Michael Culkin, John C. Reilly, Jack Rovello, Toni Collette, Ed Harris. Baseado no livro de Michael Cunningham.