Por: Cristian Oliveira Bruno.
Quando adapta-se uma cosmologia tão rica e tão famosa quanto a do Batman, icônico personagem de Bob Kane, se faz necessário manter uma cautela toda especial no que diz respeito às alterações que serão feitas tanto na cronologia quanto na concepção dos personagens. No caso do super-herói em questão, tudo é mais complicado ainda, pois quase não há o que já não tenha sido feito. O tom mais cartunesco já fora ditado e orquestrado com maestria por Tim Burton em seus Batman (1989) e Batman – O Retorno (1992). A atmosfera mais sombria e pesada a qual parece ter sido a versão definitiva dada ao personagem nos anos 80, com O Cavaleiro das Trevas, do Deus dos quadrinhos Frank Miller – a melhor série já feita sobre o Homem-Morcego – foi recente elevada a um outro estágio com a consagrada trilogia de Christopher Nolan (Batman Begins [2005], The Dark Knight [2008] e The Dark Night Rises [2012]). Mesmo a inocência e a fantasia dos primeiros exemplares dos quadrinhos teve sua vez entre 1966 e 1968, com uma série de TV contendo 60 episódios da dupla dinâmica. Assim sendo, o que de novo e diferente o produtor Bruno Heller (The Mentalist [2008-2015]) e o diretor e produtor executivo Danny Cannon (O Juiz [1995]; Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado [1998]) poderiam apresentar em mais uma adaptação para a TV? A resposta veio com o título da série: Gotham.
Voltando pelo menos 15 anos no tempo, a proposta desta vez é apresentar uma nova ótica e lançar o olhar sobre a cidade, ao invés de seu mais ilustre residente, e mostrar como uma cidade tão corrupta e dominada pelo crime chegou ao ponto de precisar de um justiceiro mascarado para manter a ordem. E isso é o mais interessante em Gotham. Mais do que acompanhar os primeiros passos e a origem de vários personagens do universo dos quadrinhos (alguns famosos, outros nem tanto), a série se baseia no fato de que ainda não há um justiceiro mascarado para defender Gotham. E com a polícia, a justiça e o próprio prefeito Aubrey James (Richard Kind) e o comissário Loeb (Peter Scolari) nas mãos dos dois chefões das famílias mafiosas que controlam todo o crime da cidade, Carmine Falcone (John Doman) e Salvatore Maroni (David Zayas), cabe ao ainda jovem detetive James Gordon (Ben McKenzie) assumir o papel de paladino solitário da justiça. E quando eu digo solitário, não é força de expressão. Embora com o passar do tempo Gordon vá adquirindo aliados em sua inspiradora jornada de combate ao crime mais do que organizado, até um certo ponto dela ele se vê abandonado por seus companheiros, chefe e seu parceiro Harvey Bullock (Donal Logue).
O plot da série é o assassinato de Thomas e Martha Wayne e a promessa feita por Gordon ao pequeno Bruce Wayne (David Mazouz) – retratado aqui aos 12 anos – de encontrar o responsável. A partir desse momento, Gordon adentra de vez no submundo e começa a entender como a cidade funciona. Não é que todos os seus habitantes sejam corruptos, mas todos têm família e jamais arriscariam oporem-se a Falcone ou Maroni. Essa faceta de uma Gotham dominada por figuras poderosas, mas sem super-poderes acaba por tornar-se, naturalmente, o segmento mais interessante da série. Não que a relação tutor/serviçal/pai entre Alfred Pennyworth (Sean Portwee) e seu determinado protegido não seja deveras comovente, ou que a luta da ambígua e maliciosa Selina Kyle (Carmen Bicondova) para sobreviver nas ruas não tenha seus momentos – embora seja a ramificação mais trôpega do programa -, mas é no núcleo criminoso que encontram-se os melhores personagens, situações e conflitos mais tensos e interessantes.
Com um elenco bastante regular e em sua maioria experiente, os personagens acabam ganhando uma roupagem diferenciada e uma cara própria, embora não abandonem os aspectos e traços mais fortes pelos quais ficaram mundialmente conhecidos. Ben McKenzie (do seriado OC e de 88 Minutos) compõe um Jim Gordon intenso e forte, com uma segurança e uma presença em cena muito boas, mostrando o quanto evoluiu com o passar dos anos. Sua parceira inicial, Erin Richards – que interpreta Barbara Keen, primeiro par romântico de seu personagem na trama – não está tão mau, mas carece de uma química maior com o protagonista. Falha esta corrigida absurdamente com a inserção da personagem da Dra. Leslie “Lee” Thompson, interpretada pela brasileira Morena Baccarin (do seriado V – Invasores), cônjuge do ator, tornando a interação entre ambos algo natural, e isso reflete-se na tela. Também destaca-se neste quesito, sem a menor sombra de dúvidas, Oswald Cobblepot, o Pinguim, de Robin Taylor Lord, tão afetado e tresloucado quanto ameaçador e doentio. Taylor Lord vive a dolorosa saga de ascensão daquele que será o futuro Rei do crime da cidade. Donal Logue recebe uma tarefa ao mesmo tempo motivadora e arriscada ao viver o Det. Bullock como um dos protagonistas, já que o personagem não havia ganhado tanto destaque até aqui fora dos quadrinhos – olhe lá uma rápida aparição no primeiro filme de Tim Burton – e sempre fora retratado como policial corrupto e desonesto, com o perdão da redundância. Aqui, Bullock ganha um novo ponto de vista e é retratado não apenas como um mau policial, como alguém que viveu a vida inteira em Gotham e conhece aquela cidade e como ela funciona, sabendo jogar de acordo com suas regras. O choque de personalidades com Gordon faz com que Bullock passe de um obstáculo para ser o primeiro aliado de Gordon – e um importante aliado, pois Bullock conhece o crime da cidade.
Criada especialmente para a série, Fish Mooney (interpretada com muita ferocidade e ímpeto por Jada Pinkett Smith) não só possui um papel importantíssimo na trama, tanto no andamento desta quanto na formação de background de demais personagens, e com certeza agradou (ou agradará) grande parte dos fãs – embora o desfecho dado a ela não seja dos mais agradáveis, ou mesmo bem pensados, provavelmente sua relação com seu fiel capanga Butch Gilzean (Drew Powell) promete arrebanhar muitos fãs para a dupla. Vários outros personagens tradicionais nas páginas das revistas da DC Comics dão as caras por aqui, sendo que alguns são bastante conhecidos do público, como Harvey Dent (Nicholas D’Agosto) – o Duas-Caras -, Edward Nygma (Cory Michael Smith) – O Charada -, Victor Szasz (ANthony Carrigan), Dr. Francis Dulmacher (Colm Feore) – o Mestre dos Bonecos -, Dr. Gerald Crane (Julian Sands) – criador do gás alucinógeno usado por seu filho Jonatan, o futuro Espantalho – e outros mais conhecidos apenas pelos mais familiarizados com o universo Batman, como Jack Buchinski (Christopher Heyendahl) – o Eletrocutador -, a policial Renee Montoya (Carmen Cartagena), Richard Sionis (Todd Stashwick) – o Máscara Negra -, Aaron Helzinger (Kevin McCormick) – o Amígdala, vilão muito semelhante e freqüentemente confundido com Bane – e Larissa Diaz (Lesley-Ann Brandt) – a Cobra venenosa.
Mas dois vilões destacam-se neste paraíso dos “Batmanáticos“, cada um a sua maneira. O primeiro deles é Jerome Valeska (Cammeron Monaghan) que, mesmo sem ser oficialmente apresentado como tal, trata-se da versão do seriado para o maior inimigo do Homem-Morcego: o Coringa. O episódio onde o vilão aparece não é um dos melhores da temporada, mas Monaghan destaca-se no diálogo final quando a referência ao coringa é feita, em uma atuação muito boa. O outro é apresentado apenas no episódio 19 (e mantém-se ate o episódio 21, penúltimo da temporada – tendo sido especulado também na segunda temporada, embora fique claro e óbvio que isso não ocorrerá). Jason Solinski, o “Ogro” (Milo Ventimiglia), surge como o principal vilão da série até então, oferecendo sensação de risco real para os mocinhos. O Ogro é aquele com quem todo policial da cidade tem medo de mexer. Gordon também, mas isso não o faz recuar. Esse ponto da trama é um dos pontos altos da série e poderia ser, inclusive, o desfecho (não que o episódio 22 não seja satisfatório, mas o 21 é ainda melhor.
Mas a própria Gotham City é a principal personagem da série. Todo personagem da cosmologia criada por Bob Kane, de Bruce Wayne à Mr. Freeze, é composto com base em traumas, seja a perda de um ente querido ou a sensação de impotência perante as situações enfrentadas diariamente. E Gotham está repleta de traumas os todos os cantos. Traumas e mitos. Em Gotham qualquer um pode ser o que quiser. Heróis e vilões usam máscaras visíveis, enquanto a alta sociedade usa máscaras políticas e diplomáticas. Por isso o Bandido do Capuz Vermelho representa mais do que um simples elemento daquela sociedade, mas também um sentimento. Gotham resume o sonho americano de ser a terra das oportunidades. Qualquer um pode ser rei em Gotham, basta tomar o que é seu por direito. Mesmo que não seja seu de direito. E a maneira como Heller e Cannon retratam esteticamente a atemporalidade da mística cidade é curioso. Há celulares e computadores, o que nos põe imediatamente nos dias de hoje. Os carros são das décadas de 60, 70 e 80 e os prédios e as ruas remetem aos anos 30 e 40. Sabemos que Gordon lutou recentemente em uma guerra, mas não sabemos qual foi. Nada é dito sobre o que ocorre além das fronteiras da cidade. Quem é o presidente, de onde vêm as pessoas de fora e tudo mais que não envolva Gotham permanece um mistério. Gotham é uma cidade que existe apenas no imaginário e está sempre em constante formação e Cannon e Heller nos permitem preencher estas lacunas, cada um a nosso modo.
A primeira temporada, apesar do caráter experimental, foi melhor do que o esperado. Sofre alguma irregularidade com relação ao ritmo e a consistência – coisa mais do que comum em séries sem um diretor fixo -, mas no fim das contas Heller e Cannon seguram bem as pontas e trilharam um belíssimo caminho para ser expandido nas próximas temporadas já anunciadas. Foi muito bom ver que ainda há o que explorar – com dignidade – de um universo já tão esmiuçado no decorrer dos anos. Este que vos escreve é fã do herói em questão e confessa sem vergonha que estava desesperançoso com esta série, mas fiquei bastante satisfeito com o resultado final desta primeira temporada e a recomendo sem medo para os fãs de Batman e até mesmo para os não fãs, dada a boa distribuição dos núcleos.
Avaliação Geral da Primeira Temporada: 7,5.
Série: Gotham (2014 – )
Ficha Técnica: na página no IMDb.